De uma escritora livre, profunda e grandiosa. Tão atual hoje, como o seria em 43 quando o escreveu. Dos bobos, dos verdadeiros e dos falsos, que destes nem o reino dos céus será o seu poiso. Atual para as nódoas sebosas que nos governam, da nóda máxima de bolo-rei à mínima governamental, bem como aspirantes a nódoas mais vísiveis, que já o sendo procuram oposição-expansão. Também poderia aplicar-se a essas peças magníficas que não fazendo parte do xadrez, gravitam nelas bobosos e borbulhosos chocalhando guisos numa necessidade pueril de serem conhecidos e amados como ninguém. Que conseguem corte , lá isso conseguem. É que existem os bobos e os babosos.
" Bobo, sim! Ser bobo foi alguma
coisa; nos velhos tempos o mister do bobo tinha ressonância. Tinha utilidade. O
bobo, deformado e desprezado, era uma consciência elementar e acessória, de que
um senhor lançava de vez em quando mão, à falta de outra melhor. O bobo via,
ouvia e sabia...
Correm tais os tempos que me
parece bem que o mister do bobo devia ser ressuscitado. Com as suas duas
funções e não uma só... Gente que divirta a outra há muita. De que se carece é
das tais consciências elementares, consentidas. Para rematar, finalmente:
sempre que me vejo em certos lugares acomete-me o desejo de ser bobo.
A corte era só uma, nos velhos
tempos. Hoje são muitas! Pequenas cortes, onde os homens mestres na arte da
dissimulação, jogam subrepticiameníe os seus interesses e tomam atitudes nobres
ou sensíveis. Mentindo sempre...em nome de ridículas verdades e de razões
excessivamente particulares.
Mas a finura, única que
verdadeiramente cultivam, para dizer agora que o preto é preto e loco que é
branco? E a paixão disfarçada mas firme com que se defendem aqui e atacam além.Com
que dominam e desbaratam os seus ilusórios contendores... Quais contendores? Os
fantoches de oposição que criam!
São admiráveis, admiráveis. Tudo
o mais é gente simplória, massa indistinta, salpicada de idealistas e de
materialistas, fora dos rumos viáveis e dos seus segredos.
Mas isto na pulverização da vida
livre não assumiria a importância nem a ardência consumidora que assume nos
gabinetes particulares, nas linhas do comando. Como tudo ai se joga e palpita…
Para exemplificar: aqui está um
homem que ontem se sentia desclassificado, mal aproveitado, e que hoje se sente
no seu devido lugar... sem uma visível alteração de funções! Mas o seu espirito
trabalhou e trabalha, molemente, brincando...enquanto a roda das paixões
tornejando à sua volta altera todos os valores de posição. Esqueceu-se lá de
pequenas humilhações e desaires, que engoliu como quem engole saliva.
É encantadora também a
naturalidade com que homens destes se cortejam! Tratam-se entre si de
indispensáveis, de preciosos. Consideram-se uma nova espécie de marcas de
xadrez, que com muito cálculo e prudência se devem manejar As próprias marcas, animadas
de espirito, dão palpites aos seus jogadores. E disto saem multas vezes
resultados esplêndidos, mas efémeros. Contingentes, para melhor dizer. Porque,
enfim, nunca se viu ambição sossegada... E num jôgo, as combinações e os lances
imaginativos sucedem-se!
No meio disto tudo correm atropelados como é
humano, absolutamente humano, os confusos interesses intemporais e impessoais:
o bocado da ciência, da arte ou da administração que uns vagos anónimos pretendem
cultivar. Para extrair proveitos... Mas sabe-se lá de que qualidade? E quem
ousa duvidar de que esses mesmos proveitos não estejam incluídos, ou não
decorram dos pessoais? Há muita dúvida viciosa e imoral.
Tão imoral como certas crenças,
absurdas.
Para que se hão-de deixar
persistir as famas gastas e as velhas idolatrias? Porque se não hão-de
arruinar, liquidar? Mas sem grosseria, de luvas calçadas. Confrontemos tipos e
épocas, E concluamos: que levianos eram os nossos maiores... que enganados...
Ó perfeita e delicada função do
bobo! Como eu te cobiço e invejo... Gostava sinceramente de te cultivar.
Em cada dia que Deus dá, se mo permitissem, se
me não arredassem com o pé (os senhores de hoje são mais impacientes e cruéis
que os antigos) os motetes lindos que eu havia de fazer...as sátiras graciosas,
a filosofia honesta, os epigramas risonhos... Animaria gostosamente a corte!
A vida de câmara, propícia por
excelência ao afinamento do espírito, tornar-me-ia tão lúcida prestável como qualquer velho bobo."
Irene Lisboa, Apontamentos,
Lisboa 1943