Passei por elas como “cão em vinha vindimada”. Percebi que eram russas ou soviéticas, vislumbrei de relance o seu mau estado, e, passei à imagem seguinte nos leilões de xadrez do Ebay.
Passadas uma horas regressei e resolvi fazer um estudo mais atento das peças, porque alguma razão estranha fazia não as esquecer.
Mau estado sim senhor. Mas, uma “patine” original, uma antiguidade que não enganava até pelas excelentes fotos que o vendedor de S. Petersburgo colocava no leilão. “Very old”, dizia ele, mas não arriscava o quanto. O preço de licitação era muito baixo, cerca de 30 dólares e faltavam dois dias para o fim. Ninguém tinha licitado até aí, e com a certeza fiquei que ninguém licitaria. Pelo estado do jogo, e pelo facto de as peças de xadrez russas –soviéticas não fazerem parte dos favores, das loucuras, dos quase “orgasmos” monetários dos colecionadores de Jaques of London, British Chess Company, entre outras. Direi que são parentes pobres do colecionismo de xadrez internacional, tirando um ou outro caso raro. Aquilo não tem valor, pelo design, pela madeira, pelos catálogos convencionados dos tais “tubarões” do colecionismo muito “British”. Assim uma certeza arreigada que este jogo pouco interesse despertaria nos “abutres” tão característicos dos leilões xadrezísticos no Ebay.
Um mail particular ao vendedor de S. Petersburgo, conhecido pela diversa e qualificada memorablia russa e soviética e “top rated seller ”com 100% de avaliações positivas em milhares de artigos vendidos, deu-me a certeza de resposta esclarecedora. Que chegou. Não podia afiançar com certeza a antiguidade do jogo, mas que a sua experiência de venda de vários jogos de xadrez, lhe dizia que as peças em leilão seriam dos anos 30-40, quer pela “patine”, o desenho das mesmas tão diferente das tão características peças soviéticas dos anos 50-60-70, pelos próprios “estragos” infligidos pelo tempo.
Acreditei que sim. Nessa noite dificuldade em dormir. O raio das peças a movimentar-se na minha cabeça, principalmente o seu desenho. Tinha a consciência de as ter visto em qualquer lado, mas não me lembrava em que livro ou foto. Fui percorrendo mentalmente as capas de vários livros que tenho, e uma súbita iluminação, daquelas que só um colecionador pode ter, tirou-me as dúvidas. De embalada para a estante dos livros de xadrez, onde retirei dois livros: “Bernsteins Schach – Umd Lebens Laufbahn” de Savielly G. Tartakower – da Tschaturanga – Olms, e o “Akiba Rubinstein – Uncrowned King” de Donaldson e Minev da International Chess Enterprises. Nas suas capas, a confirmação. Quer Bernstein, quer Rubinstein posam para a foto, com uma peças, senão iguais, pelo menos muitíssimo semelhantes às que estavam em leilão. Estas fotos são claramente da 1ª década do século XX. Seriam pois peças de xadrez ainda mais antigas, ou sejam da 1ª-2ª década do século XX?
Que estavam terrivelmente usadas, laceradas, cansadas por tanta peleja no tabuleiro, via-se, ou pelo menos eu queria acreditar que sim. Uma certeza tenho, tinha: este modelo de peças era o mais comum pelo menos em S. Petersburgo antes da sovietização do xadrez que trouxe outros modelos de peças como irei mostrar noutro artigo e particularmente nos anos 40-50. As peças usadas no Torneio de Moscovo de 1925, ainda tinham algumas reminiscências, semelhanças com as peças de 1914, como pude verificar no filme de Vsevolod Pudovkin “ Chess Fever”.
No dia seguinte a espera até aos últimos minutos para licitar as peças. Como o esperava de alguma experiência no Ebay, sem concorrência a minha licitação e o jogo a ser meu.
Quando o recebi um mês depois, a emoção mais forte sentida olhando para umas peças de xadrez. Ainda mais belas do que nas fotos. A cor, o cheiro incrível de verniz gasto e atabacado, uma “patine” de tempo original e não de “pintura fresca” avernizada, e sobretudo as mazelas de longas lutas de tabuleiro, para depois, descansarem por longos anos em casa alheia, ou sótão de clube de S. Petersburgo.
Qual restaurá-las? Então, cada vez que as olhava via vida intensa naquelas falhas, naquele gasto verniz, vida de tabuleiro, de alegrias, desilusões, de lances jogados com a raiva do desespero da derrota, ou alegria de vitória, e ia restaurá-las, para lhe insuflar vida artificial, para as tornar bonitinhas, para as valorizar no mercado? O valor delas, já interiormente o tinha atribuído a minha paixão de colecionador.
Pronto, a partir daqui, conhecem a “estória”…a pesquisa aturada sobre o Torneio de S. Petersburgo de 1914 que deu no post anterior neste blogue.
Vá lá acreditem comigo. E se as minhas forem as mesmas da partida Nimzowitsch-Capablanca ou Blackburne-Lasker deste torneio?
Porque não?