Deveria ser em Letão "Vītoliņš", mas também aparece a forma "Vitolins". Não me interessa muito. Semanas com a leitura de Sosonko e, sobretudo com o livro único ( Z. Lanka, Kengis, Klovans e Vitomskis)- editora de Carnikava) sobre este grande jogador que apenas conseguiu o título de MI!. Passei e repassei centenas de partidas de Vitolinsh e, algumas são de uma beleza fulgurante, de uma concepção de xadrez de puro deleite de ataque.
Também não me interessa mesmo nada uma biografia curta e simplista das que existem (poucas) na Net ou repetir à exaustão o que tão bela e sentidamente escreveu Genadi Sosonko sobre Alvis no seu maravilhoso " Russian Silhouettes". Apenas divagar, apenas o que me foi surgindo num fim de tarde chuvosa num recôndito café vazio e esquinado do Porto. Durante horas estive numa ponte de caminho de ferro em Sigulda. Vislumbrei ao longe um drama de alguém que consumaria fisicamente a morte interior já assumida .
Não sei se é leitura fácil ou não, se isto interessa á celebérrima comunidade xadrezista portuguesa, e qual o grau de conhecimento sobre este enorme jogador letão e as suas formidáveis partidas de ataque. O prazer de revisitar as partidas de Vitolinsh comentadas magnificamente por ele ou por Zigurds Lanka, valem tudo.
No final, um vídeo que coloquei no You Tube.
Madrugada
fria, gélida em Sigulda. No meio do esbranquiçado do dia a querer romper os
primeiros raios de sol pediam permissão para entrar.
Resoluto,
longilíneo de silhueta torre, bamboleante no seu andar característico começou a
percorrer a ponte de caminho de fim. Num estado de semiconsciência caminhava
para um ponto não definido algures a meio da ponte. Seria aí que se cumpriria o
destino, que o relógio pararia, que o Rei tombaria sem estrépito num derradeiro "abandono".
Vazio,
completamente vazio. Nem o desespero já o era. O nada absoluto de nada valer a
pena. Um gelo interior inominável, mais frio que a massa branca que se
vislumbrava nas alturas de precipício da ponte sobre o rio Gauja.
Tudo
terminado. Ou não. Ainda faltavam aqueles metros finais até ao indefinido ponto
onde tudo se consumaria. A seta do relógio da vida elevava-se perigosamente até
ao nível onde o tempo de perda equivale à queda em baque surdo e ciciado de uma
seta de um relógio de xadrez. Decisão de segundos, de presenças, de um estar
para um partir de não estar sem retorno. Hálito quente de morte anunciada ainda
em bafo de respiração.
O
fora do corpo dele vazio no vazio do corpo adentro. Inerte, tudo inerte nele,
quase já não ele. Cavalo bravio, galopante,
o seu cérebro era agora escoiceado por rápidas, fugidias, meteóricas
passagens em tumultuosa cascata.
A
vida num relance, a cabeça já separada de um corpo in sentido. Os amados Pais,
a sala do seu amado Clube em Riga onde passava dias e noites, o seu querido
amigo e mágico "Misha", o seu primeiro treinador, e até na névoa, Karen
Grigorian lhe parecia acenar. Parecia ver, mas sentia que não via. Teatro de
sombras que se desenrolava nesse ligeiro caminho. Tudo presente mas sem os
definidos, exatos contornos, como se à distância em não percetíveis manchas de
cor.
O
caminhar de olhos fixos de um olhar nimbado de um penetrante e insondável
infinito. Olhos estupefactos de milionésimos de segundos de clarividência.
Olhos de imagens mais velozes que luz sem brilho de impossível alcance, olhos
de intensa avidez de um fulgor de vida a esvair-se.
Já
não aqueles malditos medicamentos que o prostravam, que lhe tiravam a vontade
de jogar as suas peças para b5 ou f7, que lhe tolhiam a emersão nesse lago
sagrado da beleza do cálculo, da incerteza desta ou daquela variante. Já não
aquela lassidão mortal que o transformava quase em estátua, quase em peça a
mais fora do tabuleiro sem existir promoção. Já não aquele colete-de-forças que
lhe manietava corpo e alma e lhe tirava o prazer, a agitação, o vulcão que
sentia frente ao tabuleiro.
Desde
o fim da adolescência a sensação de cão raivoso a moer-lhe o cérebro, a
mastigar ossos-restos da sua dignidade. Que era louco, perigoso, desajustado,
ouvia sem compreender. Impossível colocar açaimo no seu cão bravio. Era ele que
lhe trazia a criatividade, aquela luz especial que sentia quando sacrificava
peça sobre peça até ao abandono do Rei adversário, aquele estado hipnótico de
dias e noites sem dormir no seu clube, na procura da verdade da sua variante. O
absoluto, sempre essa alquímica procura de verdade no tabuleiro que ele
acreditava alcançar pelo esgotamento de possibilidades. Diziam que era
impossível, ele achava que não. Enquanto pudesse franquear porta a porta, lance
a lance, noite a noite, sonho a sonho as sucessivas portas da verdade do
xadrez, continuaria .
Mas
agora, até isso o tinha abandonado. Tinha dado tanto ao Xadrez e o Xadrez
tinha-lhe dado tão pouco. A miséria mais absoluta, a solidão mais canina, o
desconhecimento mais abjeto. Nem o reconhecimento dos seus pares que apenas
entreviam nele o "estranho", o inadaptado, o teórico. Nem Grande Mestre de
Xadrez quando pressentia que muitas das suas partidas eram obras de arte
capazes de emparelhar com as maiores da história do xadrez. Não culpava
ninguém, porque todas as horas da vida que perdeu, tinhas por ganhas pela força
da beleza da descoberta, do alvoroço de uma novidade, do coração latejante de
um mate anunciado. Perdia também, e isso derrubava-o por dias, mas encontrava
alento no chicote do erro, na dor dilacerada do não visto, no passar ao lado
uma análise e recuperava com nova descoberta teórica, com nova esperança de uma
ideia nova ideia numa abertura, numa nova partida para a imortalidade e que
podia ser no próximo amigável no seu Clube.
Tanto
deu ao xadrez. Xadrezviveu na entrega completa a um amor ingrato, de um só
lado. Deixou tudo para seguir a Mestra que lhe pagou com a mais completa
indiferença. Caissa não ama todos por igual.
Mas
agora, nem isso lhe assomava ao espírito. Nada disso já lhe interessava. Gelado
completamente, soterrado daquela massa branca que nem sequer cobre já o
desespero.
Um
último arremedo de sépia fez-lhe vislumbrar a mãe que o embalava em frágil
berço de madeira, senteo afago nos cabelos do Pai que lhe oferece o seu primeiro jogo de peças de xadrez, sente
que daqui a pouco os vai ganhar aos dois outra vez, ouve uma melodia que em
melopeia ascendente beija os seus ouvidos :Dzīves
ūdens, nāves ūdens/Daugavā satecēja,/Es pamērcu pirksta galu,/ Abus jūtu
Dvēselē,”
Meteu
a mão no casaco sujo, velho e rombo e apertou com força o seu amado Bispo que
tinha tirado do seu jogo de xadrez. Ao longe um comboio anunciava a sua futura
presença. Parou, aspirou profundamente o ar frio e gélido de Sigulda e com a
mesma determinação com que colocava o seu Bispo em b5, saltou.
Um
som cavo, fundo, de quebrado gelo por corpo quente ouviu-se em eco nas funduras
do rio Gauja. Amanhecia em Sigulda.
Encontraram
Alvis Vitolins horas depois. Na lívida e
enregelada mão longilínea encontraram um Bispo de b5 que se tinha recusado abandonar Alvis. Tinham selado
um pacto com a eternidade.