Um bocadinho de Literatura, de Arte, de não esquecimento, e... de Xadrez cultura fora de tabuleiro também faz bem e não engorda num país em muitas coisas, nomeadamente na cultura, obeso de estupidez e boçalidade.
Uma grande artista conhecida de poucos ( não costuma expôr no Palácio da Ajuda, nem "cacilha", nem faz "cagalhões ampliados" como certeiramente os apelida o poeta Manuel de Freitas), que numa arte de inscrição poética de uma beleza sintética, frágil, comedida, tem vindo há anos a preencher um universo artístico rarefeito dessas virtudes que me fazem tanto admirar esta artista plástica.
De 86 e do catálogo da INCM com belíssimo texto de Alexandre Melo e João Pinharanda, em que o jogo, talvez o xadrez, serve como temática reflexiva inspiradora da obra.
"Mesmo quando todos os elementos remetem
para uma única situação, reconhecível — o paraíso terreal, as visitações, os
jogadores —, não se está nunca num contexto de narração, mas de aparição: o
verbo estar, conjugado como imanência sem peripécias. O que anima a presença
não é o previsível desenrolar de um jogo narrativo, o que se passou antes ou
vai passar-se depois, o que estão a fazer ou a dizer, mas uma suspensão da
batida do tempo, uma expectativa que se distende ilimitadamente e se carrega de
ternos e temíveis presságios.
Dois jogadores repousam reclinados um
de cada lado de um tabuleiro de xadrez sem peças.
Frequentemente, e quase sempre sob
maus augúrios, se tomou o xadrez para metáfora dos jogos, das regras e dos
combates que crispam o mapa--mundo e ciclicamente lhe afligem a história. Com
óbvio exagero podem, portanto, generalizar-se à humanidade toda as conclusões a
retirar do facto de nos sentarmos à mesa de um tabuleiro sem peões nem reis.
Da ausência de peças resultam
radicalmente alteradas a natureza do jogo, a marcação do tempo, a forma de
presença, a possibilidade de coincidência ou cumplicidade. O confronto ou a
dissipação deixam de ser mediatizados por acessórios guerreiros ou lúdicos, não
há modo nem motivo de comprimir as durações.
Na rarefacção do contexto
narrativo, na suspensão do tempo, as figuras entregam-se no seu mútuo mutismo,
cegueira, solidão, mas também na sua maior franqueza e vulnerabilidade.
Sem trunfos e sem pressa, as mãos
encaminham olhares que se respeitam até ao temor e se detêm no pressentimento.
Adivinhação de encontro iminente, que pudesse ser uma aliança sem ser um nó."
ALEXANDRE MELO
JOÃO PINHARANDA
De Maria Ondina Braga, escritora das maiores da Literartura Portuguesa, quem nem se "rebela" nem "margarida", extratos de um romance curioso, que por acaso nem foi dos mais felizes que escreveu, mas em que nalguns extratos aparece o xadrez como leifmotiv de uma das infelicidades conjugais de uma personagem.
"21 de Junho
Pois Vânia sempre cá veio no
sábado. Um pouco atrasada, que desculpasse... Ora, que importava? Bonito o seu
vestido de algodão florido, sapatos abertos, um penteado novo. Devido a esse
penteado, no entanto, estive todo o tempo contrafeita. Alterava-lhe as feições.
O rostinho estreito alargava; até os olhos; até o sorriso. A boca lembrava-me,
volta e meia, a boca rasgada da Brigitte. «Sabe, fica diferente com o cabelo
assim.» Bem, uma vez o Gustavo tinha insinuado que gostava mais de cabelos
curtos. O Gustavo!... «Não notas nada em mim?» Levantando a cabeça do papel onde
resolvia o problema de xadrez (joga xadrez por correspondência), olhou-a,
desatento, a pensar talvez como havia de conseguir xeque-mate — e nem a viu.(...)
Por outro lado, aquele que o meu
coração elegeu (ou o meu cérebro?)
vai-se tornando cada vez mais presente e
inexplicável. Não sei se enlouqueci. Passo as duas mãos pela testa, aparto o
cabelo molhado de suor, sufoco. E o remorso a morder-me nas veias. Éramos
amigas. Ela abria-se comigo todas as noites: «Vivo com um fantasma, sabe? Um
fantasma que joga xadrez e fala só. E
eu abstracta... e apaixonada. Ah, como é cruel estar apaixonado! Mesmo que seja só mentalmente. Os outros deixam de
existir. (...)
A Vânia jamais aludiu ao marido de
modo a individualizá-lo, a defini-lo na sua radical unidade. Antes
alternadamente como colega de estudos (ou mestre); especialista em números
(técnico de contas?); pai excitado com o nascimento do filho e vexado por este
lhe sair anormal; marido sem atenções para a companheira; espírito
terra-a-terra; jogador de xadrez...(...)
27 de Agosto
Do diário da Vânia:
Saudades? Sim: da minha sala de
estar, do meu maple, dos livros da Pearl
Buck, dos poemas da Florbela, dos discos do Bela Bartok. Aqui nem sequer
uma estante, e as paredes manchadas a alcatra rota. Não é o Gustavo que me
falta nem o baque das peças de xadrez.
Visto de longe, a frio, o Gustavo não passa de
um cavaleiro, torre ou coisa assim ao jogo de xadrez. Não consigo desligá-lo da
simetria dos quadrados a preto e branco, do método, do cálculo. Um perfeito mecanismo,
o Gustavo: Chego às sete. Preciso de jantar cedo. Tenho reunião às nove. Dá
primeiro de comer ao pequeno e deita-o.
Mas será isto vê-lo a frio? Ou vê-lo a desempenhar
um papel automatizado pela rotina, eixo de uma instituição? Como, neste
momento, me verá a frio (?) o Gustavo?(...)"
Para terminar, um poeta, Manuel Fernando Gonçalves, nem dos conhecidos, nem dos badalados, nem de escolas-lcapelas da poesia dita atual e portuguesa que existindo se negam, mas que ao longo dos anos tem construído uma obra em que o humor, a sensibilidade fina, a des-construção da realidade pelo absoluto da linguagem ,se tornaram na minha ótica uma imagem de uma poesia de invulgar qualidade.
CONTAS À VIDA
Eu sou um rapaz a prazo,
sem lei nem rock, nem rei
ou torre que queira defender
e se a dama insistir, não sei:
ou me perco e me atraso,
tenho mesmo muito que fazer
antes que ela me mate.
Todos os jogos são assim,
uns mais de lógica, de amor,
outros táticos, mesmo virtuais,
estes com as peças no chão,
aqueles cegos, fingidos, carnais.
Finjo que adivinho o meu fim
se espreito o ás do outro jogador,
embora pareça só, concentração.
A dama, dona de séria intuição,
agita-se, mexe no vento, bate
na garupa do cavalo, põe ordem
à mesa: o cheque, na minha opinião,
não tem cobertura, é falso, anima
apenas a ilusão de haver um trono
e, espero mesmo que concordem,
apesar da posição branca, incerta,
não deve, sequer em lance brilhante,
o peão tomar a sela, como dono,
como quem lhe salta para cima.
Eu sou um rapaz de mente aberta,
sem vantagem, preta ou branca,
ou roque algum em mão amante.
Não quero mesmo é ser pobre,
não quero é, neste jogo, morrer
en passant, em lance pouco nobre.
Onde vive a dama de alma franca,
o traço do que estou a escrever?
Manuel Fernando Gonçalves ( Revista de Poesia, Relâmpago, 31-32)