Resolvera encerrar-se no quarto. Estava tudo terminado. Tinha desistido do mundo, como o mundo tinha desistido dele.
Só! Completa e irremediavelmente só! Sem ninguém e abandonado por todos. Todos os seus planos de salvação por água abaixo. Não seria eliminado pela bestialidade nazi, tal como o foram as suas amadas irmãs Jenny e Irma! Tinha perdido tudo, menos a sua dignidade. Fora um campeão no tabuleiro de xadrez, seria-o agora no tabuleiro adverso da vida! Não seria essa náusea abjecta que galgava a Europa, que lhe daria xeque-mate! Abandonaria, isso sim! Mas com dignidade, senhor de si até ao fim! Quebravam-no, mas nunca o torceriam!
Só...caninamente só,
na bela e amena cidade de Estocolmo, nesses dias de Agosto. Um quarto simples,
estreito, de mobiliário sóbrio: uma cama, um guarda-fatos, uma mesa, uma
cadeira e uma poltrona velha e descorada. Em cima da mesa, o inevitável
tabuleiro de xadrez com as suas peças companheiras, que o acompanhavam desde a
sua Viena natal.
Afundado na poltrona,
uma caricatura daquele homem redondo, rosado, forte que tinha sido. Agora, um
rosto magro, macilento, barba de dias, olhos enevoados e mortiços.
Olhou com olhar
cansado e enfastiado as peças de xadrez na mesa à sua frente. Lembranças
variadas afloraram-lhe ao espírito. Não! Não e não! Xadrez não! Que fosse para
o inferno este maldito jogo! Tanto lhe tinha dado, tantas horas perdidas na
dedicação louca àquelas pequenas e mágicas peças de madeira e aos seus
encantatórios movimentos! Xadrez, não!
Mas como, se, uma
catadupa de memórias cálidas, quase calmantes
começava a invadi-lo, contrapondo-se ao seu ódio repentino?
Xadrez, não! De que
valeriam agora as memórias vãs de êxitos passados? Que tinha tido, a sua vida
xadrezística de extraordinário? Tinha sido um campeão, um jogador reputado e
respeitado, sim, mas...no deve e haver da vida, que peso na balança para o
xadrez? Talvez pesado, demasiado pesado, uma espécie de cruz de um calvário
nunca atingido! Apesar de tudo, algo dentro de si o fazia sentir redimido: a
paixão louca que tinha tido por aquele jogo encantatório! Mas...que tinha ganho
na prática?
Estava ali a paga de
lhe ter dado o tempo, a vida, os sonhos! Ele, Rudolf SPIELMANN, só e abandonado
num quarto minúsculo de Estocolmo estival.
Que tinha sido a sua
vida pessoal? Xadrez, xadrez e mais xadrez! Por este feitiço, tinha sacrificado
a comodidade de um lar, a alegria de ter filhos, o amparo de uma velhice
reconfortada. O xadrez! Que estabilidade, que presença de afectos poderia ter
dado a uma companheira, aos filhos, se o xadrez o tinha obrigado a viajar, a
partir sistematicamente depois de chegar, a partidas de roupas limpas de ida e
roupas sujas de chegada?
Não, nunca o quis
fazer! Tinha-se sacrificado a uma deusa, não tinha o direito de obrigar outros
ao mesmo sacrifício! O xadrez era para "lobos solitários" e ele, Spielmann,
tinha escolhido como profissão de fé, o vaguear incessante, esfaimado e
estonteado pelas mesas de xadrez dos grandes torneios, ao calor acolhedor da
lareira e ao sorriso matinal das crianças.
Mas não! Xadrez não!
Preferia recordar-se do belo rosto de sua mãe. Schlaf...schlaf...mein kinder! Uma longínqua cantilena de embalar,
trouxe-lhe uma paz passageira. A voz cristalina da sua mãe Cacillie
apaziguava-o menino, pacificava-o agora no seu sofrimento sem fim.
O rosto do seu
querido pai Moriz Spielmann, visitava-o agora, trazendo mais alguma paz, à paz
que ia sentindo! Em frente a um tabuleiro de xadrez, movia as peças
serenamente, enquanto os olhos ávidos de menino fascinado procuravam perceber
os objectivos dos movimentos paternos. Fora, ele, seu pai, que lhe metera o
feitiço no corpo! O seu querido pai, o seu herói, mesmo quando já
menino-prodígio lhe ganhava com facilidade! O seu querido pai, como bom judeu
que era, que o queria como banqueiro ou matemático e, que sem saber, lhe
instigou uma paixão e uma forma de vida para para sempre!
Agora, numa sucessão
de imagens, qual animatógrafo, passeavam-se pelo quarto, num quadro estranho,
os seus irmãos queridos. Leopold, grande pianista de mãos aveludadas, tocava um
prelúdio de Bach, enquanto Jenny, Mellanie e Irma dançavam suavemente, perante
o olhar zombateiro do Edgar, seu outro irmão!
Não, não fujam queridos
irmãos! Demorem-se mais uns tempos! Preciso de Vós, dos vossos ancoradouros de
ternura. Mas...
De súbito o rosto
crispado, hirto, como se a imagem se desvanecesse, substituída por horrenda
recordação. Toda aquela felicidade ceifada ao longo dos anos! A dor lancinante
de ver a sua mãe desaparecer, o seu pai envelhecer na doença, até à despedida,
o suicídio de Edgar, atacado por esquizofrenia, a morte súbita de Mellanie, o
assassínio da sua querida Irma, num campo de concentração e o não saber de Jenny,
também ela deportada!
Tanto tinha sofrido ,
para tentar salvar o que restava da sua família das garras da besta nazi!
Tantas noites em claro, tantas depressões, algumas partidas perdidas, por
impossibilidade de concentração e serenidade de espírito!
Em 1938, tivera a
certeza que morrera para o xadrez! Tinha sentido a força de jogo abandoná-lo.
Mas precisava do xadrez, já não pelo xadrez, pelo respirar do xadrez, mas para
sobreviver e tentar salvar os cacos desfeitos de uma família. Nem isso tinha
conseguido! Todos os planos falhados! Todos os contactos de costas voltadas!
Todos os amigos Suecos a dizerem que sim, fazendo pela indiferença, que não! As
esperanças da Federação Sueca, as palavras de Carl Levin, Erik Lundin e Olson,
a não se concretizarem! Negaram-lhe uma simples comissão do "Larobok", tinha
passado estes dois últimos anos da sua vida, a juntar notas e análises das suas
partidas, a escrever a sua autobiografia, que teria o belo título de "Rudolf
Spielmann, Memoirs of a Chess Master" , porque lhe tinham prometido publicação e
dinheiro suficiente para emigrar para os Estados Unidos...mas nada! Tinham-lhe
ficado com os manuscritos e entre evasivas e adiamentos , a sua esperança foi
morrendo! Sabia que era Judeu, e numa Suécia ameaçada pelas botas hitlerianas,
era um perigo potencial para quem o acolhesse, ou lhe mostrasse simpatia! Por
isso, compreendia os silêncios compungidos, os afastamentos disfarçados, as
amizades esquecidas dos xadrezistas suecos! Não lhes tinha rancor! A sua
desgraça, não podia acolher rancor pelos outros.
Magoado, sim! Tantas
injustiças! Que razões de queixa tinham dele, Spielmann? Alguma vez tinha
cometido um acto de descortesia, de egoísmo, de vedetismo, em relação a algum
colega de profissão e Mestre de xadrez? Porque o deixavam agora ali, “cão
abandonado” os seus amigos suecos? Porque se perdiam as suas angustiadas
missivas para amigos europeus, em silêncios de deserto?
Tinha dado tanto, que
era quase tudo ao xadrez, e o xadrez correspondia-lhe com a total indiferença?
Sim, sabia que o Mundo estava em Guerra, mas não era na mais terrível
adversidade, que se devia mostrar a solidariedade mais profunda? Mas não! Sabia
do egoísmo lendário, da celebérrima solidão do jogador de xadrez profissional!
Entregue a si próprio
e ao que o destino lhe tinha reservado!
De nada valeram os
mais de 100 torneios que tinha jogado, os mais de 50 "matchs" que tinha
disputado, os milhares de simultâneas realizadas! Passado e memória curta dos
homens e dos xadrezistas!
Mas não! Xadrez não!
Que o feitiço o
abandonasse, mesmo agora, no seu abandono final! Como uma doença...nem agora,
nem nunca, tal como as derrotas o obrigavam a noites em claro, nos seus
momentos de glória!
Impossível! A sua
memória alucinada, revia numa rapidez de relâmpago, os momentos marcantes da
sua carreira: as belas partidas dos seus 6 prémios de beleza, as vitórias sobre
os génios Capablanca e Alekhine, as batalhas titânicas com o seu amigo
Rubinstein, a alegria das suas grandes vitórias em Teplitz-Schonau 1922 e em Semmering
1926, aqui à frente do grande Alekhine, por um ponto, o excelente 2.º lugar de
Carlsbad 1929, empatado com o sublime Capablanca e... e...
Recordações vãs! De
que tinham valido triunfos, honras, epítetos de "rei dos gambitos", "último
cavaleiro do Gambito de Rei", "último romântico" com que fora mimoseado? Na
mais completa solidão! No mais soturno abandono!
Que lhe interessava
viver? Tinha perdido tudo que mais amava! A Suécia, perto da conquista nazi, e,
talvez quase como certeza, o mesmo destino para si, das suas queridas irmãs
Jenny e Irma! Arruinado, a viver de réstias de caridade e compaixão de muito
poucos, aprisionado, sem possibilidades de fugir para a pátria da esperança e
liberdade, os E.U.A o que lhe restava?
Tanto se tinha
humilhado! Ele Rudolf Spielmann, um dos maiores jogadores de ataque de todos os
tempos, obrigado a jogar à defesa, dobrado pela necessidade de mendigar apoio e
segurança ao seu amigo Collijn, para fugir de Praga, e receber abrigo na Suécia
em 1938, já depois de ter sido escorraçado da sua Austria Natal!
"Espero que AINDA
OCUPE ALGUM APREÇO EM SI; PARA SE DIGNAR ACEITAR um curto relato da minha
situação. Fui exilado para sempre da minha pátria, estou privado da liberdade
de viajar. Nenhum dos países europeus me deixará entrar com o meu passaporte
austríaco. A única coisa que ainda me vai agarrando à vida é a esperança de
arranjar um refúgio seguro e um trabalho relacionado com o xadrez. Não será
possível ajudar-me como me ajudou em 1919 (Primeira Guerra) arranjando-me algum
trabalho de xadrez em Estocolmo, ou em qualquer outro lugar na Suécia? A Suécia
será para mim um trampolim para ir para a Inglaterra ou os Estados Unidos da
América.
IMPLORO-LHE QUE NÃO
ME DEIXE NA MISÉRIA E ME AJUDE A ENCONTRAR UMA FORMA DECENTE DE VIDA. Posso
viver na mais humilde das condições, se puder encontrar alguma ocupação. O
anti-semitismo sente-se fortemente em Praga e faz com que VIVA NA MISÉRIA".
(Stoltz, Lundin e Spielmann Estocolmo 1930)
O seu amigo e patrono
Collijn , ouviu o seu apelo desesperado de Praga e ajudou-o! Mas o seu falecimento,
deixou Spielmann em "terra incógnita". O que se passou a partir daí, prefere
esquecer.
Estaria a pagar por
pecados que não cometeu? Tinha ao longo dos seus 59 anos de idade, procurado
ser justo, parcimonioso, equilibrado nos seus juízos, nas suas apreciações, nas
suas referências. Que lhe censuravam? Que se lembrasse, nunca tinha tido uma
palavra menos elogiosa, para quem sentia que lhe era superior ou não, no
tabuleiro! Lembrava-se claramente de um artigo que tinha escrito sobre o
gigantesco Lasker para uma revista de xadrez:
"As partidas de
Lasker são uma fonte de prazer. As suas partidas são mais profundas do que as
de qualquer outro jogador. Joga sem medo, sempre preparado para a luta e, isto,
é um sinal de verdadeira grandeza.
Lasker! Os seus olhos
de águia, os seus pensamentos, estão em toda a parte. Falo por experiência
própria. Frequentemente analisei com ele, mas o resultado era desencorajador.
Sempre que descobria uma bela ideia, ou combinação, Lasker imediatamente a
recusava, porque no seu pensamento, na sua análise, já há muito tinha
entrevisto variantes e sub-variantes, e como tal optado por outra alternativa.
Espero sinceramente
que mantenha o seu poder e grandeza por muito tempo e, que tenha a
possibilidade de coleccionar mais triunfos aos muitos que lhe honram o
passado!".
Também se lembrava do
que tinha escrito em 1935, sobre o novo campeão do mundo Max Euwe, quando sobre
este se levantavam as mais infames insinuações, sobre a justeza do seu título:
" Em primeiro lugar ,
quero expressar a minha alegria e admiração pelo facto de o trono de xadrez,
passar a ser ocupado não só a um admirável
Mestre, mas também a uma personagem íntegra e empreendedora no xadrez.
Não interessa discutir se a força do novo campeão do mundo se compara ou ultrapassa
a dos seus antecessores, Lasker, Capablanca, ou Alekhine! O que interessa é
sabermos que Euwe é um verdadeiro, cavalheiro, gentelman do tabuleiro e de
espírito, de bom coração, que sempre lutou honestamente para alcançar a mais
alta posição no mundo do xadrez".
(Spielmann-Gilg 1926)
De que o acusavam?
Que lhe censuravam? De que se lembrava ele próprio, que o tivesse envergonhado?
Nada! Não se arrependia de nada! Nem sequer da inteligente e dura carta pública
a Alekhine! Sim! Num mundo do xadrez em que Alekhine tinha o poder de boicotar
qualquer jogador, em que se recusava a pôr o seu título em jogo contra
adversários que ele sabia em momentos de forma suprema e, como tal, perigosos
para a sua hegemonia, ele o simples , humilde e pacato Spielmann, tivera a
suprema ousadia de afrontar educada, mas ironicamente o grande Alexandre
Alekhine!
Os comentários, os
remoques maldosos, a inveja escondida ou declarada, ou os apoios envergonhados
e medrosos de outros mestres, conhecera-os bem, mas a verdade é que só ele o
fez! E fá-lo-ia outra vez ! Tinha um sentido inato de justiça, de
solidariedade, de noção de bem comum, de pertença a uma comunidade
xadrezística, que não podia viver na dependência da vontade, dos temores, dos
complexos de superioridade de um Alekhine, mesmo sendo este, o Campeão do
Mundo, e, um dos jogadores mais extraordinários que o jogo tinha conhecido!
Não tinha sido por
ele, Spielmann, a carta, como maldosamente alguns sugeriram! Ele sabia o seu
lugar na hierarquia do xadrez! Sabia combinar maravilhosamente, tão bem como
Alekhine, mas não tinha a capacidade de levar as posições até essas
possibilidades combinatórias, como o tinha o extraordinário Alekhine! Estava a
léguas da profundidade estratégica e de visão posicional de um Capablanca! Não
tinha nem um décimo da arte da defesa e força psicológica de um Lasker, jamais
conseguiria a mestria artística e de arte de relojoaria do seu amigo
Rubinstein! Mas do seu pai, aprendera o sentido de justiça, de equilíbrio, de
visão multiplural dos problemas, do sentido de pertença a um grupo, a uma arte,
a uma comunidade! Não tinha sido por ele! Mas a recusa da desforra a
Capablanca, como antes, as exigências dolorosas a Rubinstein, ou os boicotes a
jogadores como Nimzowitsch, ou mesmo ele, Spielmann, tinham-lhe criado um estado
de indignação, que se consubstanciou no referido documento! Embora Alekhine,
nunca lhe tivesse respondido pessoalmente ou em artigo de imprensa, sabia que
pelos olhares, pela frieza do trato, que este jamais lhe perdoaria, todavia,
tinha por si a serenidade da razão, o espírito livre do justo. Recordava agora
o que tinha escrito, a ousadia que tinha posto o mundo xadrezístico
boquiaberto, pela coragem, audácia, para uns, desplante, azedume para outros:
"EU ACUSO!"
Talvez, seja uma grande surpresa para si, senhor "CAMPEÃO DO MUNDO”, o meu descaramento, que nem sequer tem em consideração as alturas do seu trono. Todavia, “ EU ACUSO”.
Obviamente, não ao seu jogo genial, ao qual como apaixonado do xadrez, só me pode maravilhar. Não. A minha acusação não é dirigida ao CAMPEÃO DO MUNDO, doutor Alekhine, mas ao colega doutor Alekhine. Porque, apesar dos seus prodígios xadrezísticos, acabamos por ser seus colegas de profissão, que ao fim e ao cabo, vossa excelência precisa para realizar as suas proezas imortais.
Um provérbio antigo diz “ A RIQUEZA É UM PUNHAL PRECIOSO, NECESSÁRIO PARA CORTAR PÃO, MAS DISPENSÁVEL PARA FERIR”. Os seus antecessores: Steinitz, Lasker, Capablanca, acreditavam neste provérbio e exigiam nos grandes torneios magistrais, as melhores condições para todos os jogadores. Certamente não se ofenderá se eu examinar os fins com que vossa excelência tem usado as suas armas cortantes de CAMPEÃO DO MUNDO. Tente compreender que não é a inveja que me move. Seria o último a opor-me ao seu legítimo direito, conquistado com grande trabalho. Em todos os domínios da vida, as melhores prestações são amplamente recompensadas: Porque não há-de ser assim no xadrez?
Todavia , tanto em San Remo 1930 como em Bled 1931, para além dos honorários extraordinários, vossa excelência impôs condições especiais e assim “praticamente” conseguiu eliminar Capablanca destes torneios. Naturalmente não o eliminou directamente, mas escolheu um procedimento mais fino, oculto, que não muda absolutamente nada a essência dos factos, e, que eu como perito, não quero deixar de analisar. Deverá Capablanca expiar tão duramente a sua vitória em Nova Iorque 1927?
Mas esqueçamos o passado, já enterrado, e, falemos de Nimzowitsch, que deverá ser, depois de você e de Capablanca, o mestre mais cotado na actualidade. Não acha estranho que ele não tenha recebido convite para o torneio de Londres, nem para o de Berna? Pelo menos para si, seria fácil, estabelecer as condições mínimas para que os convites lhes fossem dirigidos. Como licenciado em leis, não lhe será estranho, o “dolus eventualis” , tenho a certeza.
Não chega. Até eu, pobre jogador de xadrez, parece que me tornei em adversário “indesejável”. Não existe outra forma de explicar o meu súbito afastamento de Berna, para além, de há dois meses para cá, deixar de receber com regularidade convites para torneios, e, os que recebo, não o serem espontâneos e de boa vontade.
O comité de Berna decidiu surpreendentemente e depois da sua confirmação tardia de presença, que um mestre internacional se converteria automaticamente em “supranumerário”.
OS MEUS PARABÉNS PELA SUA EXTRAORDINÁRIA INFLUÊNCIA. Que poder mundial, para além daquele que lhe advém de ser CAMPEÃO DO MUNDO, pode impedir a Federação Suiça de Xadrez de convidar sete em vez de seis mestres de xadrez? Já agora, meu caro CAMPEÃO DO MUNDO, convide os seus adversários com frequência, já que assim poderá obter triunfos mais reluzentes, pois se não o fizer os seus triunfos serão confundidos com a DESVALORIZAÇÃO DO MUNDO DO XADREZ; baixe o seu ceptro, de contrário terei de lhe lembrar a palavra bíblica do Profeta Isaías, retomada por S. Marcos: “ QUEM SEMEIA VENTOS; COLHE TEMPESTADES”.
O recipiente está cheio. De um lado e outro do Oceano, vozes indignadas de protesto levantam-se contra a DITADURA DO CAMPEÃO DO MUNDO”
Assinado: Rudolf Spielmann
Mas não! Xadrez não!
Xadrez Sim!
Que
saudades do louco silencioso e genial Rubinstein! Que admiração por esse amigo
e portento de sabedoria Tartakower, que respeito por esse checo tranquilo,
Oldrich Duras, que fascínio por esse "pirata" boémio Teichmann, que recordação
maravilhada de jovem, por esse destino gémeo do seu, Carl Schlechter!
(Teplitz Schonau 1922-Spielmann-Rubinstein-Tartakower-Grunfeld-Reti)
Xadrez não!
Volta, volta, longa e
lenta melopeia infantil na voz cristalina da mãe Cacillie! Estou só! Como nos
terrores nocturnos de infância, preciso de Ti! Aparece meu Pai Moriz, para
jogarmos uma última partida, como jogávamos antes do adormecer! Com o fascínio
de não sabermos os segredos que os segredos do xadrez escondem! Com a pureza, o
fascínio infantil de nada sabermos de xadrez, para tudo descobrirmos do xadrez!
Apareçam meus irmãos e irmãs! Toca uma valsa de Chopin, Leopold, sorriam
maravilhadas Mellanie, Jenny e Irma! Não ultrapasses a tristeza da tristeza que
te invade Edgar!
Xadrez Não! Xadrez
Não!
Duas grossas lágrimas
sulcavam-lhe o rosto magro, quando adormeceu...
Encontraram-no assim,
quatro dias depois, no dia 20 de Agosto do ano de 1942. Sereno, afundado na
poltrona velha e descorada, em estado de coma. Morreu poucas horas depois no
hospital de Aso de Estocolmo.
Deixara-se morrer de
fome e sede, fechado num quarto, de um pouco soalheiro Agosto da bela
Estocolmo.
Na ficha clínica do
hospital, a informação, seca, lapidar, "teórica" da causa da morte: "hipertensão" e "cardio-esclerose".
Estejas onde
estiveres Rudolf Spielmann, tenho a certeza que:
A-
Nunca
jogarás com Steinitz com um peão a mais! Desconfia se não é o tal peão
sacrílego que ele dizia dar a Deus e ganhar-lhe!
B- Respeitarás
a loucura de Rubinstein! Continua a perceber o respeito que ele tinha pelo
adversário, que o fazia fugir para longe depois de cada lance, para não lhe
prejudicar a concentração!
C-
Terás
cuidado com o único olho de Richard Teichmann, porque ele via mais xadrez com
um único, do que muitos mestres com os dois!
D-
Jogarás
rápidas com Tartakower, mais para falarem da essência de Deus, ou da História
do xadrez, menos para ganhar partidas!
E- Encontrarás
outro louco genial de ataque como Tu, chamado Tal! Mas recuso-me a saber as
vossas partidas! Queimar-me-iam os olhos!
F-
Saberás,
que no actual mundo do xadrez , onde
abundam os mafiosos tonitruantes, os pavões titulados, os
analfaxadrezistas militantes, um portuguesito amador tem-te
como "herói secreto", pelo exemplo de verticalidade, de humildade, de paixão
pelo xadrez , de tragicidade de vida , que deste ao mundo!
G-
Quem
te conhecerá? Quem te continuará a conhecer? Quem te passará a conhecer? Quem
depois destas minhas paupérrimas palavras, procurará sofregamente o teu "Arte
do Sacrífico no Xadrez", ou jogará maravilhado as tuas maravilhosas partidas?
Não me interessa!
As tuas partidas, a
beleza da tua concepção do jogo do xadrez, constituem parte da minha cultura
xadrezística, da minha educação no xadrez, do alimento constante desta paixão
inextinguível que é o jogo de xadrez!
Não serás o meu único
herói secreto de xadrez, mas de certeza "primus inter pares" entre outros
Senhores do Tabuleiro. Imagino-te no meio deles qual "Xadrezistas da Távola
Redonda" no reino de Caissa!
© Arlindo Vieira