Um dos grandes nomes do surrealismo português. Injusta e estupidamente esquecido. Muitos dos seus contos nada, mas mesmo nada inferiores ao vate Herberto Helder ( claro, claro, sou blasfemo). Os seus livros começam a rarear, mesmo em alfarrabistas, principalmente os "Contos do Gin Tónico" e os "Novos Contos do Gin ". De um humor fino, mordaz, de uma agudeza desconcertante, de uma forma de riso que se transforma em sorriso desmaiado para burgueses anafados, idiotas militantes, ou amantes de badalhoca e triste stand-up comedy de muito e triste e badalhoco pseudo humorista nacional, os Contos de Mário Henrique Leiria estão e se não estão ainda, hão-de estar entre jóias cimeiras da literatura portuguesa.
Dois desses contos referem indiretamente o xadrez. E que contos! Apreciem. E, se não perceberem, paciência, que isto não é propriamente revista do Sá da Bandeira ou Parque Mayer. Temos pena!
XEQUE-MATE
_ Vai um judeu num comboio...
- Essa já conheço. Nem calcula como conheço
as de judeus! Todas.
Então o meu vizinho mudou
logo para as de escoceses.
Eram esplêndidas.
Aquilo acontecera na oferta
de um cigarro public-relations, enquanto íamos a caminho de ainda outra cidade.
Como o compartimento não tinha mais ninguém, a relação sociável dera-se
inevitavelmente.
Expansivo e muito viajado, ao que parecia,
contou-me tudo, excepto o que não contou, claro. Depois foi a ternura amiga,
com anedotas a chegar em sucessão rápida.
Acabaram os escoceses. Realmente óptimos.
- Joga xadrez?
- às vezes, com dúvidas.
- Não faz mal. A dúvida é o que nos ensina.
Se quiser...
—e puxou do tabuleirinho
portátil, encadernado em couro autêntico, próprio para todas as viagens.
Quis, não tive outro
remédio.
Passaram pelo corredor a
tocar sino. Jantar. Primeira série.
Deu-me uma certa fome, mas
tinha que aguentar um bispo que se preparava para me roubar o cavalo e sabe-se lá que mais.
Estava o meu vizinho explicando
as excelências do xadrez, a sua história e os seus santos, enquanto jogava mais uma
torre inesperada, quando rugiu a segunda série pelos espaços pasmosos do
corredor.
Quanto a mim, não tinha mais
nada a perder. Fora-se tudo. Possuía o rei escondido a um canto, dois peões apavorados
e, perdido na incerteza, o último bispo envergonhado. Cedi, logo ali.
O sorriso do meu vizinho
eficiente foi magnífico.
- Agora um
jantarzinho, ein!
Pois claro. Lá fomos, atravessando ao contrário o caminho
feito, até chegarmos às mesas trepidantes.
Comida de Ia reverendíssima patada, diria Juanito de Cuernavaca,
se estivéssemos em Cuernavaca com Juanito.
Entre a sopa e a parede ouvi
tudo. Tudo o que faltava.
Café, conhaque e voltámos, a oscilar.
Já não faltava mais nada.
Logo ao lado da discreta privada das
carruagens em viagem, há uma porta de emergência como sabem, fácil, é só
levantar a alavanca. São as emergências das viagens que a puseram ali. Levantei
a alavanca e deu-me um desequilíbrio de ombro muito súbito auxiliado com um
jeito de perna. O meu vizinho estava a explicar como se devem resolver os problemas
da deliquência pré-juvenil.
O resto da explicação hei-de
perguntar um dia destes à Erika que sabe tudo de kindergarten, de deliquências
e ainda mais coisas.
Vai um judeu num comboio...
lembrei-me de repente da história toda. É bem divertida, gostava de lhes
contar, se tivesse tempo.
JANTAR
DE AMIGOS
- A. vida é um problema
complicado — decretou Armindo o corrector, enquanto cortava com precisão mais
um pedaço do rosbife à sua frente. A !uz discretamente tamisada do QUATRO ASES
fazia realçar a transparência do vinho no copo alto, junto ao prato.
- Não mais complicado do que qualquer
outro—retorquiu Guiihermino o xadrezista que, no !ado oposto da mesa, se limitava
a um puré de legumes e queijo de soja. Era vegetariano. E também Grande Mestre.
- Desculpem-me a interrupção — permitiu-se
dizer o maître com uma leve inclinação, aparecendo junto à mesa. - Mas creio dever informar os
senhores que, por um engano inesperado, o chefe da cozinha deitou no rosbife a
estricnina que tínhamos para usar nas ratoeiras. É lamentável. Podem crer que a
casa está sinceramente penalizada com o acontecimento. - Com um sorriso
discreto e compreensivo, retirou-se deslizando e desapareceu entre o ruído
animado da sala.
Armindo estremeceu contra
vontade. O rosto mudou-lhe um pouco. Para verde. E arrotou. Então teve um
movimento em que parecia retorcer-se e começou a inclinar-se para o prato.
- Realmente não mais complicado do que
qualquer outro — insistiu Guilhermino, enquanto desviava o copo para que o
corrector não lhe acertasse com a cabeça. Levou à boca um pouco mais de puré de
legumes. Com prazer.
- Queiram desculpar-me ainda mais esta
interrupção — disse o 'maître', reaparecendo-lhes ao lado e inclinando-se
levemente. — Parece-me ser de minha obrigação informar os senhores que, por
engano realmente impróprio, o chefe da cozinha deitou no puré de legumes o
arsénico que estava destinado aos cães vadios. Permito-me afirmar que a casa lamenta
e que isto não voltará a acontecer tão cedo. — Com o sorriso discreto
retirou-se, deslizando até desaparecer entre as mesas murmurantes.
Guilhermino o xadrezista
ficou a olhar o espaço. Apenas a imaginar como conseguiria, só com um copo, o
paliteiro e o saleiro, dar xeque à garrafa de Armindo o corrector. Então sentiu
a dor que, fulgurante, lhe subia dos intestinos.
Pelo chão alcatifado
começavam a estrebuchar clientes.
(Este conto maravilhoso de MHL dedico-o aos muitos Guilherminos do Xadrez nacional e internacional, sejam jogadores, dirigentes, e outros "inos" que tais) A. V