De
amarelo do sol de fim de tarde com laivos envergonhados de branco o seu longo e
magnífico pelo.
Altivo,
felino per si e por essência, nunca foi um gato "à Pina", ou "EPC". Nunca
gostou de secretárias, de máquinas de escrever, computadores e era gatofóbico a
escritórios.
Verdadeiramente
doméstico, gostava bem mais da máquina de secar roupa e arca frigorífica, da
sua brancura e sua lisura acetinada.
Era
belo como só um nosso gato o pode ser.
Trouxemo-lo
para casa de abandono de 3 ou 4 meses, magro, “esgatado”, sujo, osso e pele que
quase nem se via uma coisa nem outra debaixo
do zoológico de parasitas.
Viveu
20 anos, segundo os livros quase 93 da nossa vida, acredito mais em gato
centenário.
Viveu
bem, presumo. Feliz, não sei. Castrado (hoje nunca o faria!), senhor do seu
domínio, uma marquise, um cesto, os seus alimentícios pratos, a sua areia, mas
sobretudo a sua independência. Era gato que se conhecia de gato e só depois os
donos (seríamos?). Tinha uma predileção especial pela minha filha mais nova E,
enquanto aos restantes membros da família dava a sensação de nos gostar numa
espécie de "pronto, está bem". Para mim em particular olhava-me de esguelha, de
desconfiar, talvez surpreendido do meu apêndice labial piloso concorrente da
finura do seu.
Sempre
adorei aquele gesto olímpico da elevação do rabo, do virar-me o "dito cujo" e
mandar-me dar um volta ao "bilhar grande". Não é brincadeira a personalidade de
um bichano.
Vida
pacífica de gato caseiro. Soalheiro muitas vezes, friorento outras, solitário
de últimos anos depois da morte da sua negra companheira gata, nunca esteve
doente, tirando um problema de pele nos últimos tempos e a maleita da velhice
que o levaria.
Crescemos
todos. Era da família. Obrigatório olhá-lo , olharmo-nos quando chegávamos a
casa. Obrigatório ver o seu pelo leve e fino esvoaçar e pousar mansamente em
tudo na marquise para desespero da T. Obrigatório no meu escritório observá-lo
da janela e ver os seus magníficos e meigos olhos, ou o seu enroscar dorminhoco
de acrobata. Assistir aos seus despertares de longas sonecas com o estirar da
atlética musculatura, seguido do seu bocejo de mostrar ameaçadora dentadura. A
sua "lambedura" pluridiária, envergonhava o meu único banho do dia.
Gato
belo e magnífico, o MEU. Nunca o senti como meu. Nunca foi um gato lamechas,
mimalho, um seguidor de dono, de procurar companhia. Nós que o procurássemos!
Por vezes olhava-me interrogativo: afinal quem adotou quem? Era tanto nosso com
nós dele. Nunca o foi preciso dizer: amávamo-nos.
Envelheceu
e muito. Percebemos nos dois últimos anos quando se tornou mais carente, mais
necessário de festas, mais miado de chamamento, mais protestativo de areia não
bem limpa. No último ano, escândalo dos escândalos, tinha-se habituado a um
canto do sofá e, ainda mais escandaloso, não se envergonhava de nos olhar "sem-abrigo" para um salto para o nosso colo onde ronronava até adormecer, como "ressono" e tudo. Acho que começou aqui a sua despedida.
Envelheceu
em demasia. Ficou magro, osso à vista que nem o pelo comprido conseguia
esconder. Começou a faltar-lhe a força nas patas traseiras. A sua artística
agilidade no salto da máquina de secar para o chão já era medida a olhar de
régua e esquadro, o seu salto calculado para a vergonha de não se estatelar.
Depois caía mesmo. Levantava-se com o garbo possível da humilhação e cambaleava
numa arqueologia do gato que fora no gato que era agora. Na parte final da vida
nem um pequeno salto de 40 cm para o sofá já conseguia. Olhava-nos envergonhado
e a pedido de ajuda. Os rins começaram a falhar e os litros de água
apaziguavam-no por instantes. Contra o conselho da veterinária, aceitava
pequenos pedaços de fiambre, de presunto, de peixe cozido variado. Comia, mas
já sem aquele gesto típico de satisfação de passar a rugosa língua pelos finos
bigodes.
Por vezes vezes miava com dores, mas num crescente apagar da chama, dormitava quase
sempre. Sono inquieto, solto, de olho entreaberto.
Por
decisão unânime, não seria abatido. Perscrutamos-lhes várias vezes o olhar, os
seus já parcos movimentos e neles víamos a mensagem de "ainda não", de quer
continuar, de querer ficar mais um bocadinho. Como ténue chama que se apaga por
ela, assim o sentimos. Não seríamos nós a promover a corrente de ar para a
apagar. Talvez quisesse um bocadinho mais para se despedir, porque não?
Nas
duas últimas semanas, uma "coisa" assomou-lhe no lado direito do rosto,
desfigurando-o um pouco. Quase espírito de gato naquele corpo de gato. Cada vez
mais estático. Na Veterinária, inconclusivo derradeiro – velhice extrema, injeção
para arrebite de dias e depois se veria.
Numa
noite de 5º Feira, depois do regresso veterinário, a minha insónia de quatro da
madrugada a levar-me até ele no sofá da sala. Olhou-me, olhei-o terna e
demoradamente. Baixou a cabeça depois de um minuto e ficou naquele estado de
dias. Percebi aquele olhar derradeiro. Queria partir. O seu já chega era um
apelo ao nosso já basta. O seu olhar de
ternura-despedida foi um beijo dado de até sempre. Afaguei-o longamente
na cabeça pela última vez e sussurrei-lhe baixinho em criança dó menor: "Parte, vai embora companheiro". Leva-nos contigo que cá dentro nunca mais
sairás!".
Na
tarde de Sexta, internamento na clínica para pretenso soro regenerador de
prolongar vida por dias, Eu sabia que não. Era o nosso segredo.
Sábado
de manhã a proposta à minha E de irmos passear à Sé do Porto, só os dois. Ela
não estranhou. Por volta das 11 da manhã um telefonema da minha filha mais
velha: da clínica informação que o gato tinha falecido durante a noite. Ia ser
cremado. Cumpriu a sua promessa, o nosso pacto.
Não
sei como o disse, nem como o consegui dizer à minha E. Vazio infindo por dentro
mais forte do que qualquer tristeza deserto. Sentámo-nos na escadaria da
pérgula do Nasoni na Sé. Sem palavras, olhar perdido, ausência d´alma dentro de
lembranças rápidas como meteoros. Deixamos correr algumas lágrimas teimosas que
se queriam cataratas do Niágara perante o olhar estúpido de foguetórios
turistas.
Dos
dias mais tristes da minha vida. Como "zombies" continuamos o passeio. Nada
seria como dantes.
A
Dor, a grande Dor viria depois. Como o apaziguamento, a transformação do
espírito dele em nós.
Eterno
o meu Gato. Para Sempre.
Texto, na medida certa, brilhante e tocante!!
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