E só no fim xadrez como transfiguração...
Um livro que é uma pérola de concepção, de edição, de amor pelo livro. Só o podia ser com o desvelo e categoria desse grande editor-livreiro portuense que é o José Cruz dos Santos e a sua "Modo de Ler". Desde a Editorial Inova passando pelo Oiro do Dia, que a cultura, a sensibilidade, o bom gosto e o amor aos livros em geral e à literatura e edição em particular de José Cruz dos Santos é reconhecida nos meios de uma certa cultura portuense ( não aquela de fachada, festivaleira, parola, entre o pseudo intelectual pimba jovem e o senil-patético turístico modo de se ser).
Um prazer e uma aprendizagem constante com este Homem, sempre que com ele me cruzo em conversas de livros e literatura no seu refúgio de Guilherme Gomes Fernandes. Foi ele que mo sugeriu. E que sugestão! Um livro magnífico com reproduções lindíssimas de pinturas (35) de Jorge Pinheiro e reflexões poéticas de João Miguel Fernandes Jorge sobre essas mesmas pinturas. Nem sempre um grande pintor e um grande poeta dão um bom livro, neste caso deram, não bom , mas um livro maravilhoso estética e poeticamente falando.
Publicado em 2012, de edição limitada, dedicado à memória de Eugénio de Andrade e de Ângelo de Sousa, guardo-o como tesouro num jardim-canto da minha biblioteca onde só eu sei.
No poema XVIII, Inspirado no álbum " Quinze ensaios sobre um tema ou Pitágoras jogando xadrez com Marcel Duchamp" (1970-74), J.M.F. Jorge reflete sobre o tempo, os corpos reais e abstratos, sobre a transfiguração do xadrez como expressão do silêncio, do momento.
Jorge Pinheiro
XVIII
Gotas de sangue e o esperma de
um deus mutilado por Cronos pontuam o
firmamento e caem sob o
harmónico som dos astros
passam os dias e as noites - o
medidor no visível das unidades corpóreas
e logo abstractas
*
Junto à mesa branca sentaram-
-se no jardim, vindo dos mortos, ao calor das
horas - as figuras ardiam no fulgor do verão
e sobre o homem de Samos e o de Blainville
movia-se o ramo da bétula negra
sem suor e sem voz
o rei e a rainha o
bispo o cavalo e logo o
peão eram coisas sensíveis, de pórfiro
verde
jogadas pelo bater do sufocante meio-dia -
sobre eles o
silêncio de um ramo, causador de todas
as coisas.
João Miguel Fernandes Jorge