XADREZ MEMÓRIA

Xadrez de memórias, histórias e (es)tórias, de canteiro, de sussurro, de muito poucos...

06/08/10

XADREZ E POESIA...

Não, não vos vou massacrar com a milionésima versão blogueira do Ricardo Reis e o seu " Tudo o que é sério pouco nos importe (...)" . Vou sim continuar uma ideia que vai para meses no blogue Ala-de -Rei se iniciou , com a publicação de alguma poesia relativamente pouco conhecida que abordava implicitamente ou explicitamente o Xadrez. ( Espero que o Francisco Vieira não se importe das citações ao seu excelente blogue-o actual e antigo!)

Assim comecemos com a poetisa Maria Pimental Montenegro (1925-1970), que neste poema joga o jogo das peças do tabuleiro como jogo da vida


Fui pião e cavaleiro
deste jogo de xadrez.
Percorri o tabuleiro
em jeito diagonal
pela mão da fantasia,
Mas surgiu a dama preta
mais o bispo transversal,
e perdi a minha vez.
Já dei xeque-mate ao rei
e desde então até agora
(por meu bem ou por meu mal)
sou torre de pedra branca,
firme, erecta e vertical.


Fernando Grade, escritor e poeta, artista plástico, crítico de arte, numa parábola à necessidade, engenho e "paciência" de pensar, refere-se a peças do xadrez


Tanto faz que os cavalos
sejam afogados no pântano dos peões
ou no labirinto da rainha.
Sócrates pensava devagar.

Reinaldo Ferreira (1922-1959) ( já citado em Ala-de-Rei), um belíssimo poeta, morto prematuramente (autor por exemplo de poemas das canções " Menina dos Olhos Tristes", ou " Uma Casa Portuguesa", e cantado por Zeca, Adriano, Fausto, Amália, entre outros) liga vida e xadrez, xadrez e vida neste poema


Na vida somos iguais

Na vida somos iguais

Às peças que no xadrez
Valem o menos e o mais,

Segundo o acaso que a fez.


Do mesmo cepo nascer
Para as batalhas pensadas,

Aos mais, peões de perder,
A raros, ficções coroadas.



Mas, findo o jogo, receio

Que, extintas as convenções,
Durma a rainha no meio

Dos mal nascidos peões.


Pedro Alvim autor de um livro de poemas " Os Jogadores de Xadrez" ,opõe a alegria e o encontro à tristeza e demissão (retirado da Ala-de-Rei, a 1ªparte, a que acrescento mais um extracto do livro


Apóstrofo (*)

Assim longos o dia fraccionavam pelas casas do Xadrez dois jogadores. Era pela tarde, quando o Sol oblíquo e fulvo se opõe já ao ponto primeiro do seu arco. Altas heras p’lo pátio desenhavam de sombra e luz cavalos diminutos – e tão assim era, tão assim, tão, que logo as palavras saqueadas no salto morriam dos Cavalos. A caminho de Agosto abelhas raras doçuras buscavam nos peões – sílabas inseridas em minutos, outro era, porém, ali o néctar; ora, o Rei uma casa aventurando, ora o diagonal perfil dos Bispos, ora as Torres tomando posições, ora a branca Dama o véu do gesto de quem pela mão a deslocava ao longo do tabuleiro desdobrando… Assim tudo era – e ‘té a métrica no lapso das sombras e da luz um apóstrofo ao ritmo breve dava para que uma letra só não ferisse o medido gesto de quem longo ao longo das casas o finito no silêncio inseria do infinito. Ao longo do tabuleiro os jogadores assim pelas heras desenhadas, como quem subtil desdobra rédeas e o instante sopesa do equilíbrio, apóstrofos colocavam nos Cavalos – e a tarde, assim sustida, era e não era o galope disparado que habita o passo do dia demorado.

(*) Poema em forma de texto, integrado no livro de poesia, Os Jogadores de Xadrez, publicado pelos Livros Horizonte (na colecção Horizonte de Poesia) em 1986.

...Já os Cavalos pelo pátio se quedaram em sua pedra última. As folhas suspenderam as verdes sombras pêlos ombros de tudo — e os cotovelos não são o início já do movimento da mão pelo Xadrez. «Sessenta e quatro casas» — conta um jogador. «Oito a raiz quadrada» — busca o outro ainda. Numa esquina algures Agosto acena ao voo das abelhas ora ido — e as uvas de Setembro sê-lo-ão em seu maduro tempo uma a uma. Entram os jogadores a porta intima no fundo do pátio tão parada — e eis passo a passo o corredor, as paredes, os quadros, os armários. Tudo agora está e se não vai, tudo ora se conta como hábito: eis a lâmina da barba, as [contas na cozinha, a botija do gás, a lâmpada sobre a mesa, os livros, os jornais, a mosca pela cal — e súbito o ruído do autoclismo. Ah, um copo de água! «Penélope, eis-nos chegados!» — e no ritmo dos corpos eis nos ficamos assim pêlos lençóis tão descobertos. Quase, e só quase, é a nossa condição, e quase como nós o foram outros, e sempre nós e outrem, outrem e nós, nos fomos contando pela vida os números impossíveis de contar. O silêncio depois, voo nenhum, a noite lá fora, a volta só da chave — ó loiça doméstica! nunca o bico do bule, nunca a asa da chávena, um dia, um dia só! um dia foram ave!

O grande Poeta David Mourão Ferreira, também não deixa de tocar o jogo de xadrez, como paralelismo da "vertigem do jogo do Amor"


E investe-se de novo a perda o ganho
em futuras empresas de segredo

E tão depressa o esqueço como aprendo

Xadrez Roleta Bolsa Qual o jogo

em que tudo tão sôfrego se troca

E ao longe brilha o brilho de uma faca


Joga Canção o jogo desta faca
Jogado no segredo é sempre ganho

se aprendo que o não-ser pelo ser se troca



Daniel Filipe, outro enorme poeta desaparecido cedo desta vida, refere-se ao xadrez como paciência e espera numa analogia com o tempo do Fascismo em Portugal



aqui ainda podemos jogar obcessívamente o xadrez.
aqui ainda podemos gostar de futebol


Inês Sarre, no poema "Cegonhas do Campo", se refere ao Xadrez

Cresce: o chá. Joga-se: o xadrez.
Xeque-mate, chá-mate: jogo de dois: ou três:


Já: sol: posto. Calada, a ave. Mal: arrastado:
Entre as árvores: estátuas: montadas: pela noite:


Segura, a rédea: a mão, envergonhada. Lê a lei- aleijada:
Cavalga: de si: cifrada: desaloja: a crueza da pedra,


Lírico Homero: de rasgos: e remendos. Pobre,
Aleijado e sem fazenda. De rastos, só: o moço.


Também nossa, pela senda: a pele: e o osso.
Traz a coroa. E é de flores: ao pescoço.


Fernando Guerreiro, inspirando-se num quadro onde o xadrez era o tema, escreveu


Escuro o primeiro plano mais evidente se torna
ao longe e por contraste

a profundidade do quadro.

Deste modo o que os dois homens antes de mais
num primeiro plano jogam
é o arbitrário,

o que serve de suporte

a todo o edifício, do quadro.

Ao moverem o tabuleiro
os dois homens fixam a própria sorte
e o acaso (agora parado)

da jogada.


Para terminar, e para os que chegaram até aqui. Tudo este post se baseou : dois poemas insertos no Blogue do Francisco Vieira, Ala-de-Rei e num pequeno livro delicioso ( que anda aí nas feiras de livro usado a 1, 2 Euros) "O Desporto na Poesia Portuguesa" do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, 1989, com pesquisa, selecção e notas de jOsé do Carmo Francisco.

É que isto de autorias e coisas afins, tem muito que se lhe diga...e é bonito ver numa capa da recente nado-morta, Revista da FPX, um belo relógio antigo, que por acaso é do Grupo de Xadrez do Porto, e não por acaso, fotografado por mim, e na "revistinha", nem uma palavra , nem da proveniência da foto,(site do GXP) nem do autor. Ou melhor...tem, mas por decoro não comento!

Abaixo, capa do livro e índice geral ( clicar nas imagens para aumentar)






5 comentários:

  1. Meu caro Arlindo!

    Estou sem palavras! Siderado, é o termo...

    Depois dos 'posts' sobre os filmes (em que ninguém abriu bico!) e da tua paixão brasileira a propósito da grande senhora Cecília Meireles, dás-nos agora um banho de poesia! E que banho! Em tempo de canícula sabe a refresco.

    Permite-me usar o teu espaço para acrescentar uam referência a um poema da nossa grande Sophia, que foi publicado pela Caminho, na obra 'Geografia':

    " De Pedra e Cal

    De pedra e cal é a cidade
    Com campanários brancos
    De pedra e cal é a cidade
    Com algumas figueiras

    De pedra e cal são
    Os labirintos brancos
    E a brancura do sal
    Sobe pelas escadas

    De pedra e cal a cidade
    Toda quadriculada
    Como um xadrez jogado
    Só com pedras brancas

    Um xadrez só de torres
    E cavalos-marinhos
    Que sacodem as crinas
    Sob os olhos das moiras

    Caminha devagar
    Porque o chão é caiado "

    Já conhecias, certo?!
    É um prazer enorme, poder ler-te.

    Sirgado

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  2. Menos por cortesia na retribuição do que pelo reconhecimento da importância dos textos, venho manifestar o apreço pela pesquisa e valor dos poemas apresentados.

    O xadrez não existe apenas nos tabuleiros como a a própria vida nos ensina e nós persistimos em ignorar.

    Tenho para mim que, por vezes (muitas vezes, aliás), o grande valor não consiste apenas num texto, num livro ou num poema, mas num conjunto harmonioso ou temático. O que é o caso.

    Dirão alguns que não é xadrez, mas poesia.
    Direi apenas que, há anos demais para terem nascido, o xadrez era bem mais arte e ciência do que cultura ou desporto, no sentido em que o entendemos actualmente. Ou sê-lo-ia, como nos temos da Maratona grega, um desporto do corpo e da mente.

    Coincidência ou não, o comentarista que me antecede perguntou-me, há uns anos nos tempos do "Salto de Cavalo" que tinha acabado de criar, se «queria elevar o nível cultural» desta malta. Não altura, não compreendi, na profundidade, aquela afirmação do Carlos Sirgado, mas blogues como o Xadrez Memória, relembram-me e provam, quanto justa era a apreciação do Carlos.
    Não é o Xadrez Memória que está a mais entre nós!
    Para nosso mal colectivo!

    Mas, Arlindo, o mundo não é só de trevas, situem-se nos tempos medievais ou nos tempos actuais.
    No silêncio e no anonimato da leitura, gostaria de continuar a apreciar os seus textos.

    O reconhecimento quando não é sincero é quase sempre póstumo e considero isso injusto.

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  3. Estava procurando uma compilação boa de poemas e poesias sobre o xadrez.Encontrei!Adorei o seu trabalho.Obrigada

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  4. O Jogo de Xadrez
    *Autor: Gagarin Lima

    Na vetusta e lendária chaturanga
    Sessa iniciou a envolvente magia
    Logo o Rajá propôs recompensa
    Pela magnífica invenção que surgia
    Qual não foi a surpresa real
    O brâmane ao pagamento se insurgia

    No limiar do medievo ocidental
    Essa invenção célere se espalhou
    Trazida pelas rotas Sassânidas
    A nobreza e o clero a abraçou
    Em uma sociedade hierarquizada
    Rei, peões e bispos a representou

    Capivara, neófito ou Grande Mestre
    Seduzidos pela arte de Caissa
    Enxadristas Armem seus tabuleiros!
    Trebelhos em infinitas premissas
    Borges é que tinha razão
    Deus atrás de deus começa a urdissa

    Aberturas, variantes, Deep blue
    Linhas, armadilhas e ciladas
    Preparamo-nos para o renhido combate
    Táticas, estratégias e jogadas
    Estudos fadigais postos a prova
    Em Campeonatos, torneios e temporadas

    A lógica conduz a contenda
    En passant começa a jornada
    Roque em defesa do monarca
    Abertura previamente preparada
    Hegemonia do centro é alcançada
    A refrega torna-se escaramuçada

    Siciliana defesa escolhida
    Manobras hábeis de garanhões
    Diagonal sempre bem protegida
    Aterroriza até mesmo campeões
    Variante do dragão a preferida
    Agressiva com avanços de peões

    Saltando poderosos cavalos
    Assombram bispos e pelotões
    Na refrega renhida do combate
    Sucumbem brancos/negros batalhões
    Lances em sutis fianchettos
    Revertem outroras formações

    Sacrifício da dama aristocrática
    Desmantela retrancadas posições
    Abrindo brechas nas linhas defensivas
    Para a entrada triunfante dos peões
    A ruína da dama de ébano planejada
    Pastoreada por Torres em sutis previsões

    Peões na sétima fileira!
    Ilusões de vitória na cruzada
    O estratagema pensado impusera
    Esperança na partida derrotada
    O implacável relógio não perdoa
    Tablas é a saída vislumbrada

    Quixotesca aventura deflagrada
    Em partida velozmente elaborada
    Fundamentos esquecidos na jogada
    Fez cair em armadilha preparada
    Dvoretsky predicava a alunada
    Estudos de final abalizada

    Posicionais sacrifícios põe a prova
    Estudados sistemas defensivos
    Menchik, Anand ou Capablanca
    Kasparov, Fischer ou seu Ivo
    Todos tem em comum a Tal defesa
    Que consagra gênios criativos

    Blitz, pingo ou simultânea
    Às cegas, rápido ou epistolar
    Online, pensado ou problemas
    A modalidade não irá importar
    A imortal sempre será sonhada
    Por Câmara, Janete, Joara ou Polgár

    Na mente de patos, perus ou capivaras
    Épicas partidas são jogadas
    A assertiva de Tartakower é acertada
    As falhas estão aí para serem efetivadas
    Crassos erros em partidas peruadas
    Reanimam para novas empreitadas

    *Sou professor de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE), Campus Juazeiro do Norte. Gosto de literatura e poesia. Guimarães Rosa é o meu favorito na literatura. Na poesia, transito de Humboldt a Patativa do Assaré. Sou pesquisador da temática: Linguagens e produção de sentidos no cotidiano caririense. Coordeno um grupo de pesquisa - Xadrez: Uma ferramenta cognitiva, além de ser um apaixonado pelo jogo de xadrez. Obs: Esse poema foi selecionado para 8ª mostra SESC de poesia – 2018.
    e-mail: gagarinlima@ig.com.br

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  5. Respeitabilíssimo professor Gagarin, esse, sem dúvidas, foi o melhor poema preparado em língua portuguesa sobre o xadrez que já tive o prazer de ler. Parabéns pelo belíssimo trabalho.

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