XADREZ MEMÓRIA

Xadrez de memórias, histórias e (es)tórias, de canteiro, de sussurro, de muito poucos...

10/08/10

FIGUEIRA DA FOZ...NACIONAL DE JUNIORES 1975 II




Sim…o teu olhar na foto, para além do tabuleiro que pareces observar. Foste sempre assim, serás sempre assim. Explicado uns tanto por cento porque nunca foste bom jogador de xadrez. O teu vício, a sobreposição do teu eu, o vogar dos teus pensamentos, à vontade de te queres concentrar no jogo, num jogo. A tua imaginação sorrateira, matreira e mansa, a passear por rostos, sons, mundos tão teus. A posição nas 64 casas, complexa e, a tua cabeça nos mergulhos de menino no Douro-Areínho, ou no Douro-Ribeira! A posição a pedir estratégia, completamente ultrapassada pelo último sorriso da Matilde, ou a última tirada da Elisa, o labirinto das variantes e sub variantes, com a Teresa a interpor-se no seu abraço, o final a pedir experiência e o problema pessoal e terrível de aluno a aflorar ao pensamento. Porquê? Nunca o soubeste explicar, nunca o quiseste explicar. Aconteceu desde o embruxamento do xadrez. Foste sempre da equipa da evasão do pensamento, da emoção, da concentração interior de ti, longe dos outros, mesmo estando presentes. Nunca umas peças de plástico ou madeira tiveram autorização de interromper o natural curso do teu fluir interior. A ginástica mental, o exercício de um pensar abstracto, geométrico, inteligente, nunca te interessou muito, ou pelo menos, nunca conseguiu vencer a poderosa força dos afectos, das emoções. Talvez nunca amasses o xadrez! Em última instância, o xadrez e o seu mundo de imersão complexa nas 64 casas, talvez fossem, uma fuga inconsciente ao eu sério de ti. Um jogo, um simples jogo divertido de menino. Agora talvez saibas, porque dedicando-lhe tão pouco, se te colou como uma praga! Conseguiste esse distanciamento tão perfeito, tão necessário, para o apreciares naquilo que será uma das suas essências: a estética, a cultura de jogo, de um extraordinário e belo jogo. Muitos tentam, procuram…poucos conseguem lá chegar! Muito poucos conseguem esse olhar interior e cultural que lhes permite qual raio-X, ver para além dos quadrados de um tabuleiro e do movimento mais ou menos coordenado de umas peças.


Agosto, Figueira da Foz, 1975. Eras novo de 18 anos e preparavas-te para ser o que ainda não sabias o que verdadeiramente querias ser. Procuravas-te com a avidez, com a perplexidade, de quem sai do certo de uma idade, de um período, para entrar no incerto de uma vida adulta. Nesse mês de Agosto, um capítulo diferente na tua história: o conhecimento de gente do xadrez, o convívio salutar e amigo de adolescentes que partilhavam o mesmo sonho, a mesma paixão por este jogo. Não te desiludiste. Foi bom.


Época conturbada fora e dentro de ti. O Verão politicamente quente de 75, o fim do Liceu, o teu navegar partidário na tua incipiente politização, do PUP, ao PPM, passando pelas RGA, pelas bandeiras azuis ou vermelhas, para acabar num… nunca mais até hoje de filiação partidária. Oxigenavas e saturavas as feridas de um amor não correspondido, começavas a descobrir o valor da solidão procurada e a beleza poética pequenas coisas. A música e os livros, começaram esse diálogo essencial, de instalação para sempre, na casa da tua vida. A entrada na Faculdade iria esperar, pelos tempos conturbados a viver, e, um ano de Serviço Cívico no IARN e como monitor de xadrez da DGD, esperavam-te.


Era Agosto nessa bela Figueira de 1975. E nós, dezenas e dezenas de jovens nela, por uma paixão comum: o xadrez. No Seminário, por hospedagem, grande parte de nós, porque uns poucos, por ambição, ou falta de vontade para a confusão, em pensão particular, ou em casa de amigos. no seminário, onde também matinalmente se realizaram alguns reatamentos de partidas adiadas. No seminário, de refeitório amplo, de quartos - celas curiosas. Um salão grande com camas baixas, onde alguns tiveram o privilégio de ficar, outros, coube-lhes em sorte um outro salão verdadeiramente extraordinário, com quartos individuais, mas que o não eram, separados que estavam apenas e só por uma rede cúbica que os dividia. Com porta e tudo, cada quarto, mas sem paredes, ou tectos, ou janelas - unicamente uma rede de arame de malha estreita em cubo que permitia toda a visão de e para….


Os seminaristas e as…tentações! É que Deus é omnipresente, mas o Diabo poderia tecê-las, e vá de travar os intentos do demo, com uma visão mesmo quadriculada, por parte de destro, pio e atento vigilante nocturno dos seminaristas. Que na altura, não deveriam existir no seminário, ou por férias, ou falta de vocações, porque aquela “pensão” estava por nossa conta! Aquelas extraordinárias redes de arame, por onde manhã cedo, no pseudo tecto, eram depositadas toalhas encharcadas, que pingue que pingue, iam molhando o incauto dorminhoco, até que estremunhado, entre um “filho da p…”, um “fod….”, “put…que vos pariu”, berrava que nem louco, nada satisfeito com o “baptismo” seminarista que lhes tínhamos preparado! Havia os espertos que afastavam a cama do alvo central, mas de nada lhes valia, pois a barrela ainda era pior, pelo encharcamento lateral, autênticos tiros ás redes, estilo “água-vai” nas “fuças” do angelical dorminhoco, sonhado protegido. Estive sempre do lado dos “encharcadores”, porque o meu dormitório, era no outro salão, todavia nunca pude cantar vitória, pois a vingança era servida fria, madrugada dentro, com “berros aos ouvidos” e autênticos “martelos” de almofadas, dos “encharcados” da manhã anterior! Dois gangs, perfeitos, definidos: os “encharcadores matinais” e os “travesseiros nocturnos”! Lembro-me como se fosse hoje, daquele riso muito particular e matreiro do João Sequeira, depois de me ter ensurdecido e almofadado as “trombas” pelas três ou quatro da madrugada, como vingança da encharcadela dessa manhã. Ao pequeno-almoço, aqueles que coragem tinham de se levantar, pazes feitas pela fome, ou pelo sono de noite mal dormida.

Ao Jantar, ânimos mais acelerados, pelo extravasar das emoções vividas nos tabuleiros do Casino Peninsular. Aqui e ali a “pêra” de mão portuense levantada a ameaçar, a “cabeçada” a quereres levar, o costumeiro “ vai pró cara…” e uma ou outra voz mais sensata a apelar à calma, ao bom senso, ou a interpor-se entre os beligerantes e tudo conforme as regras da sobremesa. Pela noite dentro, os noctívagos saíam para as miúdas, o casino, ou o cafés. Os “Xadrezistas-seminaristas” ficavam para as cartas, as rápidas, o “dolce-fare-niente”, ou a preparação da partida do dia seguinte. Eras um deles.


Mas estudar o quê? Dois livros apenas e, um deles surripiado por empréstimo ao meu F.C.Porto, no meu saco-mala portuense: “La Defensa Paulsen” de Pedro Cherta, da Escaques e El Gambito de la Dama” do Ludek Pachman. Descobri então, numa noite o que eram livros de Xadrez, daqueles bons e a sério! A minha educação livesca no xadrez, nunca tinha ido além do Xadrez Básico, dos volumes de aberturas do Pachman, já então ultrapassados, da Paulsen do Cherta, das Defensas Índias do Euwe e de uma ou outra revista Europe Échecs, ou a Jaque do Jose Luís Gonzalez, nada mais! Sabia que no Porto, o Sílvio Santos nos levava à perna com alguns Informadores, ou com ou outro volume alemão do Schwarz, agora que existiam livros com a qualidade, com a beleza dos que vi nessa noite no Seminário na Figueira da Foz, não o suspeitava.


Que os irmãos Sequeira, traziam uma mala pesada, cheia de livros, notava-se, agora que me deixassem folhear alguns, que me deixassem maravilhar com outros, foi um privilégio. Ao contrário de muitos xadrezistas que mais tarde vim a conhecer, para quem o segredo, a novidade, era “a alma do negócio”, e como tal se recusavam a mostrar livros, revistas, os Sequeira não me recusarem mostrar essas preciosidades, que o eram na altura e o ainda são agora para qualquer bibliófilo de xadrez. Nunca o souberam, mas o seu gesto nesse Agosto de 75 foi o propulsor do meu gosto pelos livros de xadrez, pelo coleccionismo de livros de xadrez. Que grandes livros, na altura! Esses livros fabulosos da R-H-M Press, dos primeiros e belíssimos cartonados volumes da Batsford britânica, dos Informadores Yugoslavos. Tinham uma apresentação gráfica, uma clareza de ideias, uma disposição da teoria, com que ainda hoje, as Everyman, ou Gambit, deveriam aprender. Passei três ou quatro noites a folhear os livros da autoria do David Levy, do W.Harston, do R.Wade, do Blackstock The Sicilian Dragon, The Grunfeld Defense, The Pelikan Defense (com análises de Svesnikov e Timoschenko), The Sacrifice In the Sicilian, The King’s Indian, etc. Não faltava na mala livresca do Sequeira, os que na altura me pareceram maravilhosos livros do Reuben Fine “ Basic Chess Endings” , “The ideas behind the chess openings “ “ The Middle Game In Chess”, além de diversos Informadores. Como não ser candidato ao título o João Sequeira, ele que até já tinha participado em Europeu e Mundial de jovens, ele que até livros húngaros tinha?



Percebi à altura, a distância espantosa entre a preparação teórica, a capacidade de estudo, o “apetrechamento” de muitos jogadores de Lisboa em relação aos do Porto. O equilíbrio começou a estabelecer-se, quando ou através do Durão, ou através de Férias, a “malta” do Porto conseguia a mesma bagagem teórica através dos livros, Informadores e mais tarde das Enciclopédias! Eu não! Ainda corria até Vigo, não para os caramelos, mas para o Corte Inglês, onde se vendiam os bons e relativamente baratos livros da Martinez Roca, Colecção Escaques!


Foi boa essa semana xadrezística na Figueira. Xadrez, convívio, risos! Éramos jovens e sorriamos. Tornamos aquele seminário menos austero, levamos talvez os últimos ecos de vida e juventude àquelas paredes. O xadrez, o xadrez como pano de fundo. O nacional, mas também as simultâneas do Meste Júlio Santos e o Recorde Ibérico do Álvaro Pereira em simultânea às cegas-26 tabuleiros. Estive lá, fui lá ! Conto? Um pouco de vergonha que guardo todos estes anos! Nem o Álvaro Pereira saberá! Aqui perto de mim a partida que ganhei ao Álvaro. Fui ao Casino, para assistir à simultânea. Os Juniores a disputar o Campeonato estavam “proibidos” de jogar, ou pelo menos, foram convidados por questão de ética, a não jogarem. Não sei como, mas perante a falta de jogadores, dei por mim sentado num dos tabuleiros da simultânea, talvez por fascínio, talvez porque o xadrez, o jogar xadrez, estava na ordem das minhas prioridades, depois de ter perdido nessa tarde. Alguém, penso o Meste Júlio Santos, me chamou a atenção para o facto de ser um Júnior “jeitoso” e não ser bonito ir defrontar o Álvaro numa simultânea daquele estilo, mas perante, a inexistência de outro voluntário, fiquei. E ganhei, uma peça primeiro, a partida pouco depois. Não contribuí para um score mais positivo do Álvaro Pereira, no seu recorde. No fim, envergonhado, não tive a coragem de pedir ao simultaneador para me assinar a folha de partida. Saí do Casino Peninsular e noite dentro, acabrunhado, dirigi-me para o me parecia naquela altura, o acolhedor seminário. Mais tarde (ou antes) joguei outra simultânea, esta à vista com o Mestre Júlio Santos, empatando a partida.


Era Agosto, na Figueira de 1975. Num campeonato Nacional de Juniores de Xadrez, onde ainda consegui ganhar dois ataques Fegatello, a jovens do interior. Onde vi o António Fernandes, então com treze anos, como ainda hoje o vejo: um estado de nervosismo incrível, nos apuros de tempo, na partida que disputou comigo e que perdi.Onde conheci e joguei a minha primeira partida com o António Pereira dos Santos, já de uma categoria e correcção no tabuleiro impecáveis. Um Nacional que terminou em grande, com a vitória muito “profissional” do Luís Santos, com os outros favoritos nas posições imediatas. Um Nacional que me demonstrou à saciedade a distância enorme que me separava em força xadrezística, em preparação, em métodos de estudo, em relação aos melhores jogadores “juniores” nacionais.


Foi.. Acho que foi aí, na Figueira da Foz, nesse Agosto de 1975 que comecei a perceber pela primeira vez, que competitivamente nunca ultrapassaria determinada categoria, aquilo que na altura se chamaria a 1ª Categoria. Que a minha força de jogo, que o meu progresso xadrezístico poderia ir um pouco mais além, mas nunca como o tinha sonhado ao 15 ou 16 anos.


Iria a continuar a dedicar-me ao Xadrez, mas já não com a intensidade, com a paixão competitiva, com as horas de tempo que até aí lhe tinha dedicado. Outros interesses, outras paixões mais intensas e produtivas, de mim se iriam apoderar. Sei hoje: Foi na Figueira da Foz, nesse Agosto de 1975 que comecei a perder o Xadrez, um determinado tipo de xadrez, uma faceta do xadrez, para o reganhar a juros, com toda a paixão, toda a sua integralidade, a sua beleza global. Perdi um tipo de xadrez, para me sair taluda de outros. Saí da Figueira, mais humilde, mais humano, mais consciente do eu xadrezista que era.


Foi bom esse Agosto de 75 na Figueira da Foz. Foi bom ter-vos convocado camaradas xadrezistas na minha memória, foi bom ter quase cinquenta e ver-vos em dezoito, foi bom continuar esta ternura de me sentir pertencente a um grupo de xadrezistas que tem sabido envelhecer no xadrez português. È bom reencontrar-vos longe a longe, mais enrugados, mais carecas, mais Xadrezistas talvez, em rápidas de fim-de-semana, em hall de hotel, mas sempre “juniores” nessa paixão que continuais a sentir pelo nosso jogo. Foi bom esse Agosto de 75 na Figueira da Foz! Talvez por isso, não quis despertar torrentes de memória emotiva, que estou a ficar, um “meia-idade piegas”, com uma possível ida à Figueira aos recentes Torneios da Figueira. Como o Carlos Tê: por vezes é melhor não regressar ao local onde se foi feliz. Fui-o durante uma semana, nessa bela cidade da Figueira nesse Agosto de 1975. Acreditem ou não... a vocês o devo!