XADREZ MEMÓRIA

Xadrez de memórias, histórias e (es)tórias, de canteiro, de sussurro, de muito poucos...

25/10/14

DURÃO nos seus 84 anos



Caro Mestre e Amigo Durão não é a primeira vez que sobre si escrevo no meu Xadrez Memória, até um poema já lhe dediquei, e como é óbvio sei que hoje comemora o seu aniversário. Aliás, se me esquecesse, lá estará o site do Kevin Spraggett e os seus excelentes artigos sobre si para mo lembrar.

Sabe o Mestre Durão que sou parco, muito parco mesmo em encómios pessoais no xadrez português, e quando o sou, é porque o visado me deixou profunda marca naquilo que ao xadrez diz respeito, nomeadamente na paixão e amor ao xadrez que continua viva, talvez ainda mais, do que quando aprendi este bruxedo encantador aos 14 anos.

Assim neste artigo duas ou três coisas gráficas que nunca vi em lado nenhum, fosse no site do Kevin, fosse no fabuloso vídeo do Babo, ou mesmo em qualquer site de xadrez.

É um artigo sobre o Mestre na antiga FLAMA nº 213 de 4 de Abril de 1952. A fotografia de capa que  Silva Nogueira, esse grande fotógrafo, principalmente do teatro, hoje tão esquecido (mais um!)  realizou do Mestre Durão é simplesmente extraordinária, e arrisco-me a dizer talvez a melhor foto do Durão ( das muitas em que foi retratado) que algum dia vi. A postura, a elegância que sempre o caraterizou, o fabuloso Staunton e o lado técnico da foto de uma nitidez e jogo de luz quase perfeito, encantaram-me de tal forma que não descansei enquanto não palmilhei durante meses "lés e grés" tudo o que era sítio para arranjar a revista. Dentro um belo artigo de R. D. ( Rolo Duarte) com um Durão de 11 anos enternecedores.

Depois, de pesquisa aqui e ali mais umas fotos raras do Mestre. Em Nice 74 no jogo com Guernsey, e grandes fotos do Zonal Amsterdão 63. Por último a foto de capa de uma Jaque, o Durão num recente torneio, e até uma caricatura.

Pata terminar duas grandes e pouco publicitadas partidas comentadas pelo Durão, em que o seu talento e visão de xadrez são evidentes.
No fim, uma sua vitória das 4 que obteve em jogos comigo. Partidas sempre "rasgadinhas", mas em que o Mestre mostrou a diferença entre a mestria e o jogador "piço" de 1. categoria (seria?) Arlindo Vieira.


Mestre Durão, um abraço enorme e que a deusa Caissa lhe permita ficar entre nós por muitos e bons anos.  Aqui no meu melhor tabuleiro e peças, vou repassar dez das suas melhores partidas – estética e aprendizagem do xadrez de que me vou alimentando.

(para os meus parcos leitores e porque sou um mãos largas, as fotos em tamanho acessível para " right click and save") - basta clicar nelas.















DURÃO,Joaquim - Kievelitz (RFA)
1980
[Durão, Joaquim]
1.e4 c5 2.Cc3 e6 3.g3 d6 4.Bg2 g6?!

Esta jogada é duvidosa porque permite a reação central imediata. Teria sido superior 4... Cç6 levando a partida para posições conhecidas e aguardando que as Brancas definissem o avanço do peão d à 3|_ ou 4|_ casa. No primeiro caso, então sim , as Negras poder-se-iam decidir pelo fiachetto do Bispo de Rei sem problemas.

5.d4 cxd4 [5...b6? 6.dxc5 bxc5 7.e5 d5 8.Cxd5+-]

6.Dxd4 Df6 7.Dd3 Cc6 8.Cf3 Dd8

A Dama estava mal colocada e devido à ameaça Bg5 opta por retroceder e ocupar-se da vigilância do peão d6 atrasado, que é outro dos problemas do Jogo negro

9.0–0 a6 mais uma jogada de um peão, para evitar Cb5 e ataque ao peão d6

10.Td1 Parece insólito este lance, até porque a Torre faz falta nas colunas de Rei ou Bispo de Rei. Aqui esta jogada justifica-se pois atyrasa o desenvolvimento do Bispo de f8 a g7 casa natural deste Bispo.

10...Dc7
[10...b5 talvez fosse melhor]

11.Bf4 e5 12.Cd5 Db8 13.Be3 Be6
[13...b5 14.Cb6 Ta7 15.Cxc8]

14.Cb6 Ta7 15.Cg5 Cf6
[15...Bg4 16.Dc4 Ch6 17.f3+-]

16.Cxe6
[16.Cd5 Bxd5 17.exd5 Ce7 18.Bxa7 Dxa7 19.Dc3 Bg7 também se ganhava a qualidade desta forma, mas as Brancas consideraram, talvez erradamente que seria de forma mais longa e difícil do que a jogada do texto]

16...fxe6 17.Cc4
[17.Dc4 Rf7 18.Bh3 De8 não levaria a nada de concreto]

17...Ta8 18.Cxd6+ Bxd6 19.Dxd6 Dxd6 20.Txd6 Re7 21.Bc5 Rf7 22.Tad1 Tac8 23.Bb6 Re7
as Negrass esperam uma cilada salvadora, mas as Brancas viram mais longe e deixam-se cair nela 24.c3! No caso das Negras não precipitarem os acontecimentos, o plano das Brancas seia simples : f3 seguido de Bf1 ou Bh3 e a aproximação do Rei ao centro a partir de f2 com um final claramente superior

24...Cd4? 25.cxd4 Rxd6 26.dxe5+ Rc6 [26...Rxe5 27.f4#] 27.Td6+

foi este xeque que escapou às negras. As Brancas ganham o cavalo. A fuga do Rei levaria ao mate 27...Rb5 28.Bf1+ - Rb4 29. Td4+etc

1–0







 Shipman,Walter (2400) - Durao,Joaquim (2220)
New York op New York, 1986
[DURÃO, Joaquim]
1.d4 d5 2.Cf3 Cf6 3.c4 c6 4.Dc2
uma variante utilizada pelo GM Miles com o objetivo de levar o jogo para uma espécie de Catalã, evitando assim combater a defesa Eslava do Gambito de Dama.

4...e6 [4...g6 5.Bf4 Bf5 6.Db3 Db6 7.e3 Ca6 8.Cc3 Dxb3 9.axb3 Cb4 10.Ta4! Era outra possibilidade, mas com melhor jogo das Brancas como na partida Palatnik-Popov(URSS, 1976)]

5.g3 Ce4 Com o objetivo de tentar entrar numa espécie de variante Stonwall da defesa Holandesa

6.Cfd2 Com a ideia de expulsar o mais cedo possível o Cavalo, mas é duvidoso que seja melhor do que o desenvolvimento natural do outro Cavalo a c3 ou d2

6...f5 7.Bg2 Bd6 8.Cxe4 fxe4 9.f3
[9.0–0 Parece ser melhor]

9...exf3 10.Bxf3
[10.exf3 e5!]

10...0–0 11.0–0 e5 12.dxe5 Bxe5 13.cxd5 Bh3 14.Td1 cxd5
[14...Db6+ 15.Rh1 Df2 16.Db3 com as ameaças de pxp + e Be3]

15.Be3 [15.Bxd5+? Dxd5 16.Txd5 Tf1#; 15.Txd5 Db6+ 16.Rh1 Df2 com ameaças variadas Df1 mate; Txf3 e Dg2 mate]

15...Cc6! 16.Cc3 [16.Txd5 Cb4 17.Txd8 Cxc2 com ganho decisivo de material]
16...d4 17.Bf2 Txf3!
Forte sacrifício de qualidade que deixa muitas vulnerabilidades na casas brancas do Roque do MI americano

18.exf3 Df6 19.Db3+
 [19.Ce4 Dxf3 20.Db3+ Dxb3 21.axb3 Cb4 e a boa situação das peças negras aliada ao forte peão passado compensariam a qualidade]

19...Be6 20.Ce4 Df7 21.Da3
[21.Dd3 Bc4 com ganho de tempo]

21...h6 tanto para impedir um Cg5 como para abrir uma casa de escape ao Rei

22.Rg2 Tf8 23.h4 Bd5 24.Td2 b5!
As Brancas conseguiram evitar Bxe4 ganhando peça, todavia, as negras conseguem agora dar um novo impulso no seu ataque ao Roque com este lance que pretende afastar a Dama branca da defesa de f3

25.Tc1 Bc4 26.b4 a5! 27.f4 Bxf4!! novo sacrifício, agora especulando com a dupla ameaça depois de 28.gxf4 - Dxf4

28.Txc4 bxc4 29.gxf4 Dxf4 30.Te2
Devolvida a qualidade resta esta defesa, mas os peões negros compensam amplamente a peça. A luta está decidida

30...d3 31.Te3 d2! 32.Da4 Dg4+ 33.Cg3 d1D 34.Dxc6 encontrava-me em apuros de tempo e por isso o meu adversário decide resistir. Agora o mais simples era 34...Dç2, mas...

34...Txf2+ 35.Rxf2 Dd2+ 36.Ce2 Dxh4+
[36...Df4+ 37.Tf3 Dde3+]

37.Tg3 Dhf4+ 38.Rg1 De1+ 39.Rh2 Dxe2+ 40.Rh3 Df5+ 0–1



Arlindo,Vieira (FCP) - Joaquim,Durão (SLB)
Cam Nac I Divisão Coletivo (3), 27.02.1987
 1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cc3 d5 4.Cf3 c6 5.e3 Cbd7 6.Bd3 dxc4 7.Bxc4 b5 8.Bd3 a6 9.e4 c5 10.e5 cxd4 11.Cxb5 Cg4 12.Da4 Bb7 13.Cbxd4 Db6 14.0–0 Bc5 15.Be3 h5 16.b4 Dxb4 17.Dxb4 Bxb4 18.Tab1 Bxf3 19.gxf3 Cxe3 20.fxe3 Bd2 21.Rf2 Cxe5 22.Be4 Tc8 23.Re2 Bc3 24.Cc6 Cxc6 25.Bxc6+ Re7 26.Tb7+ Rf6 27.Be4 Thd8 28.Td1 Txd1 29.Rxd1 a5 30.Td7 Bb4 31.Td3 Tc7 32.h3 Rg5 33.a3 Be7 34.Td4 Bxa3 35.f4+ Rh4 36.f5 Rxh3 37.fxe6 fxe6 38.Re2 e5 39.Td1 Tc1 40.Td5 Tc5 41.Td1 Tc1 42.Td5 Bb4 43.Txe5 Rh4 44.Bg6 Tc5 45.Te4+ Rg5 46.Bf7 Bc3 47.Te8 a4 48.Ta8 Ta5 49.Th8 Rf6 50.Ba2 a3 51.Tf8+ Re7 52.Tf7+ Rd6 53.Rf3 Bf6 54.Tb7 h4 55.Tb1 h3 56.Th1 Th5 0–1






04/10/14

AQUI HÁ GATO





De amarelo do sol de fim de tarde com laivos envergonhados de branco o seu longo e magnífico pelo.


Altivo, felino per si e por essência, nunca foi um gato "à Pina", ou "EPC". Nunca gostou de secretárias, de máquinas de escrever, computadores e era gatofóbico a escritórios.
Verdadeiramente doméstico, gostava bem mais da máquina de secar roupa e arca frigorífica, da sua brancura e sua lisura acetinada.

Era belo como só um nosso gato o pode ser.

Trouxemo-lo para casa de abandono de 3 ou 4 meses, magro, “esgatado”, sujo, osso e pele que quase nem se via uma coisa nem outra debaixo  do zoológico de parasitas.
Viveu 20 anos, segundo os livros quase 93 da nossa vida, acredito mais em gato centenário.


Viveu bem, presumo. Feliz, não sei. Castrado (hoje nunca o faria!), senhor do seu domínio, uma marquise, um cesto, os seus alimentícios pratos, a sua areia, mas sobretudo a sua independência. Era gato que se conhecia de gato e só depois os donos (seríamos?). Tinha uma predileção especial pela minha filha mais nova E, enquanto aos restantes membros da família dava a sensação de nos gostar numa espécie de "pronto, está bem". Para mim em particular olhava-me de esguelha, de desconfiar, talvez surpreendido do meu apêndice labial piloso concorrente da finura do seu.
Sempre adorei aquele gesto olímpico da elevação do rabo, do virar-me o "dito cujo" e mandar-me dar um volta ao "bilhar grande". Não é brincadeira a personalidade de um bichano.


Vida pacífica de gato caseiro. Soalheiro muitas vezes, friorento outras, solitário de últimos anos depois da morte da sua negra companheira gata, nunca esteve doente, tirando um problema de pele nos últimos tempos e a maleita da velhice que o levaria.
Crescemos todos. Era da família. Obrigatório olhá-lo , olharmo-nos quando chegávamos a casa. Obrigatório ver o seu pelo leve e fino esvoaçar e pousar mansamente em tudo na marquise para desespero da T. Obrigatório no meu escritório observá-lo da janela e ver os seus magníficos e meigos olhos, ou o seu enroscar dorminhoco de acrobata. Assistir aos seus despertares de longas sonecas com o estirar da atlética musculatura, seguido do seu bocejo de mostrar ameaçadora dentadura. A sua "lambedura" pluridiária, envergonhava o meu único banho do dia.

Gato belo e magnífico, o MEU. Nunca o senti como meu. Nunca foi um gato lamechas, mimalho, um seguidor de dono, de procurar companhia. Nós que o procurássemos! Por vezes olhava-me interrogativo: afinal quem adotou quem? Era tanto nosso com nós dele. Nunca o foi preciso dizer: amávamo-nos.




Envelheceu e muito. Percebemos nos dois últimos anos quando se tornou mais carente, mais necessário de festas, mais miado de chamamento, mais protestativo de areia não bem limpa. No último ano, escândalo dos escândalos, tinha-se habituado a um canto do sofá e, ainda mais escandaloso, não se envergonhava de nos olhar "sem-abrigo" para um salto para o nosso colo onde ronronava até adormecer, como "ressono" e tudo. Acho que começou aqui a sua despedida.


Envelheceu em demasia. Ficou magro, osso à vista que nem o pelo comprido conseguia esconder. Começou a faltar-lhe a força nas patas traseiras. A sua artística agilidade no salto da máquina de secar para o chão já era medida a olhar de régua e esquadro, o seu salto calculado para a vergonha de não se estatelar. Depois caía mesmo. Levantava-se com o garbo possível da humilhação e cambaleava numa arqueologia do gato que fora no gato que era agora. Na parte final da vida nem um pequeno salto de 40 cm para o sofá já conseguia. Olhava-nos envergonhado e a pedido de ajuda. Os rins começaram a falhar e os litros de água apaziguavam-no por instantes. Contra o conselho da veterinária, aceitava pequenos pedaços de fiambre, de presunto, de peixe cozido variado. Comia, mas já sem aquele gesto típico de satisfação de passar a rugosa língua pelos finos bigodes.
Por vezes  vezes miava com dores, mas num crescente apagar da chama, dormitava quase sempre. Sono inquieto, solto, de olho entreaberto.


Por decisão unânime, não seria abatido. Perscrutamos-lhes várias vezes o olhar, os seus já parcos movimentos e neles víamos a mensagem de "ainda não", de quer continuar, de querer ficar mais um bocadinho. Como ténue chama que se apaga por ela, assim o sentimos. Não seríamos nós a promover a corrente de ar para a apagar. Talvez quisesse um bocadinho mais para se despedir, porque não?
Nas duas últimas semanas, uma "coisa" assomou-lhe no lado direito do rosto, desfigurando-o um pouco. Quase espírito de gato naquele corpo de gato. Cada vez mais estático. Na Veterinária, inconclusivo derradeiro – velhice extrema, injeção para arrebite de dias e depois se veria.


Numa noite de 5º Feira, depois do regresso veterinário, a minha insónia de quatro da madrugada a levar-me até ele no sofá da sala. Olhou-me, olhei-o terna e demoradamente. Baixou a cabeça depois de um minuto e ficou naquele estado de dias. Percebi aquele olhar derradeiro. Queria partir. O seu já chega era um apelo ao nosso já basta. O seu olhar de  ternura-despedida foi um beijo dado de até sempre. Afaguei-o longamente na cabeça pela última vez e sussurrei-lhe baixinho em criança dó menor: "Parte, vai embora companheiro". Leva-nos contigo que cá dentro nunca mais sairás!". 


Na tarde de Sexta, internamento na clínica para pretenso soro regenerador de prolongar vida por dias, Eu sabia que não. Era o nosso segredo.

Sábado de manhã a proposta à minha E de irmos passear à Sé do Porto, só os dois. Ela não estranhou. Por volta das 11 da manhã um telefonema da minha filha mais velha: da clínica informação que o gato tinha falecido durante a noite. Ia ser cremado. Cumpriu a sua promessa, o nosso pacto.


Não sei como o disse, nem como o consegui dizer à minha E. Vazio infindo por dentro mais forte do que qualquer tristeza deserto. Sentámo-nos na escadaria da pérgula do Nasoni na Sé. Sem palavras, olhar perdido, ausência d´alma dentro de lembranças rápidas como meteoros. Deixamos correr algumas lágrimas teimosas que se queriam cataratas do Niágara perante o olhar estúpido de foguetórios turistas.

Dos dias mais tristes da minha vida. Como "zombies" continuamos o passeio. Nada seria como dantes.

A Dor, a grande Dor viria depois. Como o apaziguamento, a transformação do espírito dele em nós.

Eterno o meu Gato. Para Sempre.