XADREZ MEMÓRIA

Xadrez de memórias, histórias e (es)tórias, de canteiro, de sussurro, de muito poucos...

01/11/11

S.PETERSBURGO 1914 - UM TORNEIO MAGISTRAL

Aviso para o que vão ler: Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência, mas qualquer coincidência pode ter verosimilhança com a realidade.



(Imagem de jogadores e organizadores num dos luxuosos salões do Clube)

Com um ruidoso e chiado estrépito de ferro em carril, envolto numa mistura de nevoeiro matinal e fumo espesso de locomotiva, eu, Arlindov Vieirovich, chego numa manhã primaveril à estação Ligovo em S. Petersburgo. Estamos no ano de 1914, no dia 20 de Abril, um dia igual a tantos outros dias de Primavera nesta maravilhosa cidade banhada pelo Neva, se não fosse a diferença de ele significar o início de um dos maiores torneios de xadrez de todos os tempos.




O grande Torneio Internacional de Xadrez de S. Petersburgo.

A minha paixão pelo jogo não me podia deixar indiferente, e no meio de afazeres profissionais e comerciais, lá consegui dois dias para assistir à sessão inaugural deste majestoso evento. Na gare esperava-me o meu amigo Eduard Ivanovich Talvik, que iria se o meu anfitrião e fonte preciosa de informação sobre jogadores e torneio.



O percurso até ao centro da cidade, realizado numa caleche de dois andares puxada a dois cavalos, serviu para rever uma urbe pujante de beleza e progresso, enquanto Talvik me ia elucidando sobre pormenores xadrezisticos relativos ao grande torneio. Digamos que foi uma viagem em que o útil do meu ouvir se juntou ao belo do meu olhar. Pausadamente fomos passando pela rua “grande nobre” – futura Kuibyshev, pela “nobre pequena” – futura Michurin, não sem antes termos vislumbrado a belíssima ponte Nikolayevsky enquanto nos dirigíamos pelas populares Ruzhejnaja Pushkarsky, Grebetsky para a grande praça do Palácio. Reparei mais atentamente no jardim Gostiny Dvor e no tão falado mercado Nikolsky, com vontade de uma visita mais demorado a estes dois locais emblemáticos da cidade.





Talvik, delicada e solicitamente ia explicando que o Clube de Xadrez de S. Petersburgo fora fundado dez anos atrás no seguimento do vazio que se tinha criado com a falência da Sociedade de Xadrez Tschigorin e que o ponto alto do Clube seria este Torneio em celebração do Jubileu, que se queria ainda mais forte e famoso do que o extraordinário S. Petersburgo 1909. O campeão do Mundo, Emanuel Lasker, agora com 46 anos seria o cabeça de cartaz, mesmo com a soma astronómica de por si exigida de um pagamento extra de 4000 rublos e 250 rublos por partida (pelo que os seus 500 rublos pagos para o fundo do torneio representaram uma insignificância), mas teria em Akiba Rubinstein um futuro candidato a Campeão do Mundo, no jovem Capablanca, brilhante vencedor de S. Sebastian dois anos antes e, na promessa vencedora do torneio russo preliminar classificativo para o grande torneio, Alekhine, adversários de respeito, isto sem denegrir os grandes jogadores como o alemão Tarrasch ou, o americano Marshall, apesar da força de jogo dos seus tempos áureos, já os ter abandonado.


Admirei-me pela ausência de alguns fortíssimos jogadores que apreciava e de quem conhecia algumas excelentes partidas, tais como Amos Burn, Teichmann, Winaver, ou de Duras, Spielmann, Tartakower, Maróczy, Schlechter, mas Talvik informou-me que para além do critério discutível da organização de convidar apenas jogadores que tivessem sido vencedores de um “grande” torneio internacional até à altura, alguns jogadores recusaram o convite devido à idade, enquanto outros não puderam ser convidados devido a motivos políticos relacionados com o clima de tensão vivido entre a Rússia e o Império Austro - Húngaro. O velhinho “Blackdeath” , Blackburne, Isidor Gunsberg, o sem-tréguas Janowsky, os promissores Nimzowitsch e Bernstein completariam o quadro competitivo num torneio cuja fórmula suscitava polémica – numa primeira fase, um torneio de todos contra todos, e depois uma fase final a duas voltas com os cinco primeiros classificados. Em prole da competitividade do Torneio, contra os empates de Grande – Mestre, e aceite por todos os jogadores, foi a surpreendente e inovadora regra de que nenhuma partida poderia ser declarada empatada antes do lance 45, a não ser por xeque perpétuo, “afogado” ou repetição de lances.


Perdi a noção do tempo, vislumbrei o relógio de uma torre próxima que marcava as 13 h e 45m, e súbito, a caleche parou frente a um edifício imponente, onde à porta se aglomeravam centenas de pessoas. O porteiro tinha dificuldades em conter o aglomerado que num indistinto vozear tentava, ao que percebi, arranjar os poucos e últimos bilhetes disponíveis para a primeira sessão do Torneio. O meu não muito aprofundado conhecimento da língua russa, deu-me para perceber um comentário curioso de um afortunado aficionado que tinha conseguido o tão ambicionado bilhete : “preço de Caruso”, “preço de Caruso”, repetia ele com um sorriso nos lábios, enquanto conseguia entrar o portal sagrado que dava acesso ao templo onde os grandes - mestres de Caissa se degladiariam daí a minutos no tabuleiro. Percebi pouco depois este comentário jocoso, como o percebi ainda melhor no dia seguinte ao despedir-me do meu amigo Talvik.


Convidado que era, fiquei dispensado deste preço operístico e vi franqueada a minha entrada no “templo”. Subi longa escadaria engalanada de passadeira vermelha e no primeiro andar uma enorme hall dava para uma entrada onde se podia ler a letras bem delineadas “ Clube de Xadrez S. Petersburgo”. Entrei, um longo corredor era flanqueado por quatro salões, para terminar ao fundo no salão nobre, um amplo e belíssimo espaço de 30 por 30 metros, de altura considerável, todo atapetado a vermelho, e de cortinados sumptuosos e aveludados de cor verde-escuro. Era este o salão principal onde se realizava o Grande Torneio, e como tal, já repleto de espectadores entusiastas, embora pelo aspecto, de classe social endinheirada. Talvik informou-me que o acesso a esta sala, implicava o dispêndio de 5 rublos por bilhete de sessão, soma considerável para a época e nível de vida em S. Petersburgo, enquanto o acesso a outras duas salas, onde tabuleiros murais reproduziam as partidas do Grande Salão, obrigavam ao pagamento de 2 rublos por bilhete. Percebi o “preço de Caruso” da entrada, embora me surpreendesse o elevado número de aficionados de xadrez presente, pese o preço elevado dos bilhetes. No dia seguinte “Talisha” informou-me que a receita de bilheteira no primeiro dia do Torneio, ultrapassou os 800 rublos, soma que tinha deixado encantado Comité Organizador. Meses depois, através de correspondência, vim a saber que só de bilheteira a organização conseguiu angariar 6 mil rublos, que somado ao mecenato e patrocínios como os 6 mil e quinhentos da Associação de Bancos e Homens de Negócios, os mil oferecidos pelo Czar Nicolau II, e os dois mil conseguidos através dos próprios membros do Clube de Xadrez, tornaram este evento lucrativo, apesar dos prémios elevados e da primazia monetária Laskeriana.


Assim, grande movimento, enorme excitação em todas as salas, principalmente no Salão principal, onde os espectadores literalmente se comprimiam para assistir às partidas ao vivo e sentir a respiração, tiques e postura no tabuleiro dos seus ídolos. Um ambiente pesado, sufocante, em que o amplo salão parecia pequeno para tanta gente, e como tal, as condições de sossego para a prática do xadrez, eram muitas vezes adulteradas, obrigando à intervenção do Director do Torneio para exigir silêncio, ou para evitar que se derrubasse o cordão que delimitava o espaço dos jogadores do dos espectadores. Contaram-me mais tarde que na 3ª sessão, o ambiente era de tal forma “asfixiante” que Capablanca e Rubinstein na sua partida, saiam alternadamente do tabuleiro e refugiam-se numa sala contígua para respirar e desanuviar a mente. Talvik deu-me a versão do Comité organizador para esta situação: inesperado número de aficionados devido à excepcional qualidade do Torneio, e férias de Páscoa durante a primeira fase do Torneio. Acredito nestas duas variáveis, todavia não posso deixar de acreditar noutra variável não desprezível: a necessidade de lucro de bilheteira por parte do Comité Organizador face ao investimento elevado num torneio de xadrez deste calibre.


Assim, a “ferro – e –fogo” , a muito “empurra-desculpe”, lá consegui lugar na primeira fila, mesmo junto ao cordão de segurança que separava os jogadores dos espectadores. Lugar privilegiado de observação, de olhar circular sobre todos os tabuleiros de jogo e respectivos murais, embora a minha atenção particular se concentrasse na mesa Nimzowitsch – Capablanca, mesmo à minha frente. Por ser a primeira sessão, uns minutos antes já todos os jogadores se encontravam sentados nos respectivos tabuleiros, segundo o emparceiramento.

Observo os grandes jogadores, naqueles momentos antes de a tensão se instalar com o pressionar dos relógios e a primeira jogada efetuada no tabuleiro.

No tabuleiro 1, Janowsky-Bernstein, no tabuleiro 2, Gunsberg-Alekhine, no tabuleiro 3, Blackburne-Lasker, no tabuleiro 4, Nimzowitsch-Capablanca, no tabuleiro 5, Marshall-Rubinstein. Tarrasch ficaria livre nesta primeira sessão.


Blackburne e Gunsberg com um sorriso cálido, não escondem a satisfação pela chamada a um evento que deles poderia prescindir, mas quase como reconhecimento os resolver acolher, pois afinal não teria sido o segundo simplesmente um finalista ao título mundial com o extraordinário Steinitz, e o primeiro, um dos jogadores que mais torneios tinha vencido desde o final do século XIX?




Janowsky, não sorria, mostrando no seu olhar, a mentalidade típica de jogador de mesa de pano verde, que o era, um olhar de desafio, uma mistura de preparação para a luta e optimismo desmesurado.


Marshall, sorria e procurava tagarelar amavelmente com o seu adversário, dando a sensação de um pacifismo, que sabia-se falso, pois desde o início do movimento das peças, gostava de incendiar o tabuleiro numa luta sem tréguas.


Rubinstein, neste caso o seu adversário, respondia em monólogo, ou acenava ligeiramente a cabeça, imerso que estava já na partida que a poucos momentos se iria desenrolar. Corpo hirto, rosto esfíngico, o seu olhar de uma espécie de concentração ausente não conseguia esconder a preocupação que lhe ia na alma: brilhante vencedor de vários torneios, esta era talvez a competição da sua vida da sua vida, aquela em que tinha a dupla e ciclópica tarefa de mostrar ao mundo que poderia e deveria suceder ao grande Lasker, e que a jovem geração personificada em Alekhine, Nimzowitsch, ou Bernstein, ainda teria de se perfilar e pedir meças à sua pessoa e á sua enorme genialidade de tabuleiro para o ultrapassar. O mundo de xadrez acreditava que sim, que Akiba seria o próximo, aquele que destronaria o “velho” Emanuel do trono de Caissa. Enganar-se-ia o mundo do xadrez. Znosko Borovsky, diria mais tarde ao meu amigo Talvik, que no fim da primeira parte do Torneio, sentiu a morte xadrezistica de um sonho, e que percepcionou em Rubinstein uma depressão profunda, que não sendo visível a olho nu, prefaciava um “nunca mais”. Disse-lhe que sentiu no grande Rubinstein uma ausência de si, um fechar de porta interior do qual só a fachada-esqueleto seria o rosto visível.


Olho agora os rostos fogosos de Alekhine e Nimzowitsch e, o seu olhar não escondia a ambição que lhes ia na alma, quase um olhar prelúdio, um olhar querer muito, um olhar pleno de confiança que atingiriam o cume-olimpo do xadrez. O olhar do jovem Alekhine queimava de ansiedade, de desejo de mostrar no tabuleiro o génio que se sentia imbuído por qualquer deus. No de Nimzowitsch, a arrogância de quem se sentia chamado a uma tarefa, a uma simples equação de resultado anunciado: ali quem mandaria era ele!



Percepcionei Tarrasch junto dos organizadores, pois era o primeiro jogador a ter direito a “free day”. Não enganava sobre o que dele se dizia. Debaixo da sua aparente simpatia, uma postura e um olhar que denotavam o “Praeceptor Germaniae”, o Doutor Tarrasch, acima de um mundo do xadrez que ele considerava um apêndice, uma excrescência da sua Medicina, ou quando muito, eterno credor dos seus ensinamentos, das suas obras-de-arte no tabuleiro. Estaria ali para “o que desse e viesse” e o seu olhar impertinente e as suas maneiras entre o arrogante e o presumido, não conseguiam esconder que poderiam contar com ele, o “velho” Tarrasch. Já tinha passado os cinquenta, já se convencera que apenas Lasker lhe era superior, mas os outros ainda teriam longo caminho a percorrer, e até talvez estudar as suas partidas, orar aos seus ensinamentos para lhe roerem os calcanhares.


Reparo agora no tabuleiro número 1 onde Bernstein enfrenta Janowsky. Parece estar ali para a luta, para o combate, e até orgulhoso de estar perante a elite do xadrez mundial, todavia o seu olhar não tem a fogosidade e ambição de um Alekhine ou Nimzowitsch. Parece estar ali mais pelo prazer do xadrez, pela criação de uma tela em tabuleiro de 64 casas. Talvik tinha-me informado que desde o Torneio de Vilna (1912), Bernstein tinha decidido trocar de amor e dedicar-se ao amor primeiro, a advocacia em Moscovo.Talvez tivesse aprendido com a desgraça de outros grandes jogadores do passado, talvez seguisse a avisada máxima “no tabuleiro… antes da ambição, o Pão”.



Olho agora aquele alvo de todas as atenções, aquele de quem se dizia fadado pelos deuses para destronar Lasker. Perfil apolíneo, quase de deus grego. Não muito alto, mas de postura tão altiva no tabuleiro que esses centímetros lhe pareciam dados por natural dom, de mãos largas e esguias que pareciam fazer deslizar as peças em bailado clássico, de olhar intenso, frontal, de uma paisagem interior que só ele sabia. Um olhar que incomodava, pela certeza que imprimia. Não, não era o de fogosidade, de confiança, c era algo mais, muito mais, um olhar quase de demiurgo, de alquimista: sei de onde venho, para onde vou, e o que quero, demore o que demorar. A maneira como respondeu ao e4 de Nimzowitsch foi de tal maneira lento e teatral, que deu a sensação de saber por antecipação o resultado da peleja: gesto largo, lento, arqueado de braço e sobretudo prenhe de uma convicção e objectividade de domador. As peças pareciam obedecer-lhe cegamente, ordenadamente, qual rebanho a pastor conhecido, enquanto noutros jogadores fugiam desvairadamente de controlo. Capablanca, o jovem de 26 anos ali estava, agora ombreado de divisas brilhantes, já temido, respeitado, banhado de uma auréola de genialidade indisputada, bem longe das dúvidas e queixa de Bernstein à sua participação em S. Sebastián 1911. Aliás, Bernstein seria derrotado em S. Sebastian e aqui pelo mesmo Capablanca, quase num ritual de a vingança ser servida a frio. Não tive dúvidas sobre com que materiais se estava a fazer um campeão, principalmente no fim da sua partida com Nimzowitsch. Como dúvidas não tive, que neste Torneio, Lasker, teria de olhar para o lado em relação a Capa, e não para trás, como costumava fazer em relação a outros adversários.



E Lasker, o grande Emanuel Lasker. Um olhar estranho, que ainda hoje não consigo definir. Indolente? Obrigação? Geometria de uma certeza? Não sei! Observo-o surpreendido. Cruza a perna, coloca cuidadosamente os apetrechos fumadores como soldado prepara arma para batalha, sorri ligeiramente, depois falabarata alegremente com “der Schwarze Tod”, tudo numa despreocupação aparente, mas que não esconde uma ansiedade de começo da luta. Acende um charuto e espera o primeiro lance. Ao e4 das brancas, avança o seu peão de rei para a quarta casa, com um gesto quase raio-relâmpago, quase declaração de guerra. Descruza a perna, coloca as duas mãos abertas a tapar os ouvidos e emerge qual mergulhador numa profundidade de tabuleiro, que só posso suspeitar. Durante a partida, surpreendo aqui e ali um esgar de sorriso no seu rosto, um ligeiro encurvar das sobrancelhas, um ou outro semicerrar dos lábios, tudo isto numa concentração como raramente vi em qualquer jogador. Os olhos, aqueles olhos laskerianos, bebiam tabuleiro, alimentavam um cérebro que se sentia fábrica, forno permanente em ebulição. Houve uma altura em que o meu fascínio me levou quase a um delírio: deixei de ver Lasker. Passei a ver um tabuleiro-Lasker, ou um Lasker-tabuleiro, não sei, em que tudo se misturava numa enorme e frondosa árvore de cálculos, de infindas variantes e subvariantes. Os olhos de Lasker pareciam-me os olhos de deus, a existirem. Ele via tudo, calculava tudo, adivinhava tudo. Aquilo era um feitiço. Uma verdadeira imersão nos segredos escondidos naquelas casas, que só ele parecia ver. Numa altura da sua partida, uma ruga-vinca na sua testa, e uma ligeira colocação lateral do corpo, pareciam corresponder a algo que não teria percepcionado, todavia como águia-real, recrudescia a sua concentração, e imediatamente encontrava resposta ao problema. Nunca vi no grande Lasker qualquer sinal de pânico, ou de medo. Máscara de mil olhos, duplicação de si no tabuleiro, um mineiro ou arqueólogo que escavava onde outros nem sonhavam tesouros, assim me parecia o Campeão do Mundo. Que estudava arduamente as partidas dos seus adversários, não tinha dúvidas, que bebia com paixão revistas de xadrez da época, que estudava aprofundadamente o xadrez, que bebia de uma experiência de anos de grandes combates com jogadores extraordinários, também não me surpreendia, mas, como era possível que este homem tivesse competido ao mais alto nível neste mesmo local, 5 anos atrás, em 1909? Como manter uma força de jogo tão formidável mesmo sem competição ativa durante largos períodos? Numa conversa com o meu amigo Talvik, este perguntou-me se já tinha visto algum “tanque de guerra”, disse-lhe que sim. Rimo-nos os dois. Era, Lasker era um tanque de guerra do tabuleiro! E rimo-mos mais, quando Talvik imaginou os adversários de Lasker a serem trucidados pelas “lagartas” desse tanque! Lasker nem precisava disparar, acrescentei eu.


Assim, em S. Petersburgo no ano da Graça de sua alteza o Czar Nicolau, 1914, que o viria a ser de desgraça pouco tempo depois, para ele e para a Rússia. A Grande Guerra e Revolução tratariam de mostrar que novos tempos tragariam o tempo.


Assim, a minha atenção nesta primeira ronda deste Torneio que suspeitava ficar para sempre gravado a letras de ouro na história do xadrez. Depois, o ter de partir por afazeres profissionais, e o regressar na última jornada da fase final, já sem Rubinstein, sem Nimzowitsch e com a certeza que levei no início do Torneio. Apenas Capablanca poderia fazer frente a Lasker. E Lasker, este génio do tabuleiro, iria mais uma vez mostrar ao mundo de que era feito um campeão.



No final do Torneio, Eu, Talvik, o jovem Levenfisch, os irmãos Borovsky, entre outros, passamos e repassamos no tabuleiro diversas partidas deste torneio, entre elas a de Nimzowitsch com Capablanca, o maravilhoso mate que Tarrasch infligiu a Nimzowitsch, que para irritação de Herr Doctor, apenas lhe deu o 2ª prémio de beleza, atrás de outra jóia do tabuleiro que foi a vitória de Capablanca sobre Bernstein, mas sobretudo as partidas de Emanuel Lasker.


Uma e outra vez e uma vez e outra e de cada vez um fascínio continuado, uma beleza e uma força de jogo que sentia em cada lance, em cada adaptar a situações no tabuleiro, a saber mudar estatégia e aplicá-la praticamente a uma mudança repentina na posição, a um colocar de problemas sistemáticos aos adversários, mesmo quando em posição inferior, parecendo que qual jogador de cartas, sabia tirar trunfo sobre trunfo de um naipe sem esperança. Uma arte de defesa tão extraordinariamente eficaz que os seus adversários não a compreendiam, como não compreendiam lances laskerianos de força martelo-compressor que nem suspeitavam que a posição pudesse pedir, ou mesmo combinações sem mácula, fruto de um cálculo apuradissimo. Lasker estava claramente à frente do seu tempo xadrezístico. E uma e outra vez, e resmas e resmas de variantes e de interrogações, e nesse repassar das partidas de Lasker, essa sistemática incompreensão do jogo de Lasker. Uma certeza, talvez no futuro se compreendesse este jogo, esta forma prática de jogo alicerçada numa capacidade de cálculo assombrosa, numa compreensão da estratégia do xadrez fora do comum, numa assimilação-aprendizagem do passado como poucos, numa cultura de e extra tabuleiro que lhe permitia conhecer os adversários, estudá-los e adaptar-se camaleonicamente a um estilo, sobrepondo sempre a sua força de jogo, numa capacidade de abarcar a luta no xadrez como certamente poucos campeões do mundo conseguirão alcançar.



Talvez a mais bela homenagem a Emanuel Lasker, veio de onde menos se esperava, do Dr. Siegbert Tarrasch, que no seu belo livro sobre este Torneio escreveu :

“ Lasker recebeu uma soma extra de 4 mil rublos da comissão organizadora deste torneio para nele participar. Eu nem sequer acho muito elevada. Se alguém joga assim xadrez! Temos poucos ou nenhuns mecenas de xadrez, se os tivessemos, não duvido que estariam dispostos a gastar mais, muito mais, para ter partidas maravilhosas como as jogadas por Lasker neste torneio. Eu próprio estaria disposto a contribuir para esse fim, se fosse rico(…)”.


Mas deixem-me voltar à minha impressão da 1ª sessão deste torneio, e à impressão profunda que me causou o jovem Capablanca na sua partida com Nimzowitsch. A sua forma de abordar esta partida e a capacidade de resolver um problema complicado no tabuleiro ainda hoje me sugestionam. Findo o torneio, com Talvik e Eugene Znosko Borovsky, analisamos esta partida e concluímos que ela seria uma daquelas que dariam uma polémica prolongada ao longo da História do xadrez. Teria Capablanca sacrificado voluntariamente o peão, ou teria simplesmente chegado á conclusão que teria mesmo que o entregar para não piorar a posição e ter possibilidades de contrajogo? O que conseguiu da posição foi imenso, fruto da sua extraordinária capacidade compreensão posicional, mas a verdade é que Nimzowitsch não estava ao mesmo nível e não conseguiu compreender a natureza posicional da luta e adaptar-se à posição criada pelo desaparecimento do peão negro. Ainda hoje, quando olho para esta partida e revejo muitos comentários sobre ela realizados, não posdo deixar de sorrir: uns defendem que Capablanca sacrificou o Peão e idealizou toda uma longíqua estratégia de dezenas de lances até à vitória, outros que Capablanca pura e simplesmente “deu” o peão, (como dá a entender mais tarde na sua autobiografia) porque a abertura lhe estava a correr mal,e assim se libertar e procurar compensação na actividade das suas peças e nas colunas abertas.


Não tomo posição. Não só por amizade e reconhecimento, continuo a acreditar que do melhor que se escreveu sobre esta partida e posição, foi obra do meu amigo Eugene Alexandrov Znosko Borovsky, no seu maravilhoso livro “ The Midle Game in Chess” (e infelizmente tão esquecido!). Aliás, muito do que escreveu, já tinha partilhado connosco nas análises conjuntas que referi, o que prova o seu profundo entendimento do xadrez. A sua força prática de jogo, a sua cultura, a sua capacidade de escrita e de comunicação de ideias são uma autêntica maravilha da arte de escrever de e sobre xadrez.

Vejamos então o que escreveu Znosko-Borovsky sobre esta posição ( sempre que possível integrarei nos seus comentários outros que me parecerem oportunos).


Mas antes de terminar este artigo: muitos depois deste torneio, com o meu amigo Talvik já falecido, aquando da visita a um célebre Campeonato da URSS nos anos 50, tive a alegria imensa de receber das mãos do seu filho um presente extraordinário: um jogo de peças do Torneio de Xadrez de S. Petersburgo de 1914, bastante castigadas depois de anos de duras pelejas nas mesas do Clube e que Talvik tinha guardado religiosamente para mim. Foi dos presentes mais belos e emocionantes que recebi e que guardarei para as gerações futuras apreciarem como arqueologia de um dos eventos mais extraordinários da História do Xadrez.

Nimzowitsch,Aaron - Capablanca,Jose Raul

St Petersburg preliminary St Petersburg (1), 21.04.1914

[Z. Borovsky, Khalifman-Yudasin, J Watson, Arl]


1.e4 e5 2.Cf3 Cc6 3.Cc3 Cf6 4.Bb5 d6 5.d4 Bd7 6.Bxc6 Bxc6 7.Dd3 exd4 8.Cxd4 g6 9.Cxc6?!

[9.Bg5 Bg7 10.0–0–0 h6 (10...0–0 11.Cxc6 bxc6 12.e5! dxe5 13.Dxd8 (13.Df3 De7 14.Ce4 ganhando rapidamente) 13...Taxd8 14.Txd8 Txd8 15.Ce4!) 11.Bh4 0–0 12.f4 Te8 13.The1 (13.Cxc6 Fritz 13...bxc6 14.e5 dxe5 15.Dxd8 Texd8 16.Txd8+ Txd8 17.fxe5 ganhando) ]

9...bxc6 10.Da6 Dd7

[10...c5? 11.Dc6+ Cd7 12.Bg5 Be7 13.Bxe7 Rxe7 14.Cd5+ Rf8 15.Cxc7 Tc8 16.Dxd6+ Rg7 17.Cd5]

11.Db7 Tc8 12.Dxa7



Aqui a grande problemática; teria Capablanca sacrificado o peão intencionalmente? O mesmo Capablanca no seu "My Chess Career" , depois de confirmar que jogou muito rapidamente, não afirma que sacrificou o peão, quase como desculpa, afirma : " Nimzowitsch foi injustamente criticado apenas e só porque perdeu a partida. Os críticos sugeriram aqui lances variados, mas as partidas dos Grandes - Mestres não se desenrolam por lances individuais, mas sim por planos coordenados de ataque e defesa, e estes planos geralmente não são revelados". Max Euwe, pensava que Capablanca pura e simplesmente tinha perdido um peão e nunca imaginou que isso seria possível na sólida defesa Steinitz da Espanhola. Chegou mesmo a afirmar que os erros de Capablanca eram tão claros como os seus fortes lances.. Dizer hoje que a ideia de Capablanca é fácil de entender por qualquer jogador moderno é tão estultícia, como afirmar que qualquer jogador dos nossos dias entenderia facilmente a posição e se defenderia bem melhor do que Nimzowitsch ( John Watson dixit)

12...Bg7 13.0–0 0–0 14.Da6



a ideia de h percebe-se. Procurava trazer a Dama a uma posição jogável. Mas...para quê esta perda de tempo? Que temeu nos seus cálculos o grande estratega? Não seria melhor um ganho de tempo imediato com um lance defensivo à primeira vista, mas ao mesmo tempo de reagrupamento do jogo das Brancas? Vejamos o que nos diz nesta posição Znosko Borovsky: " As negras têm apenas vantagem temporal, enquanto as Brancas possuem um peão a mais e superioridade espacial. Para além de tudo não apresentam debilidades assinaláveis e qualquer tentativa das Negras de obter qualquer compensação pelo Peão, só pode passar pela vantagem temporal que possuem. Como é usual nestas posições, a sua comparação é essencial. Neste caso a diferença dos Bispos é fundamental. O Bispo Branco ainda não foi desenvolvido, enquanto o seu rival negro de g7 aponta ao Cavalo Branco e indiretamente ao Peão de b2. Depois, a retirada do Cavalo de c3, poderia implicar um perigo adicional para o Peão de a2. Por tudo isto, as Brancas necessitam de algum tempo para completar o seu desenvolvimento. Antes que o Cavalo possa jogar, é preciso proteger o peão de a2, defender o Cavalo com o Bispo de c1 e movimentar a Torre de dama. Só depois o Bispo branco poderá aspirar a um mais largo raio de acção. Como se vê, a vantagem temporal das Negras pode incrementar-se desde que não se limitem a observar os esforços do adversário para desenvolver o seu Flanco de Dama, para já inactivo, o que poderia acarretar uma compensação pelo tempo perdido no ganho do Peão, e como tal uma vantagem extra no seu material a mais. Que debem jogar as Negras? Outra característica da posição: são as colunas abertas no Flanco de Dama. Através delas, podem as peças negras atacar os peões e como tal obrigar as Brancas a uma proteção contínua do seu peão a mais. Mas se as Negras jogam as suas Torres nas colunas abertas sem mais, as Brancas conseguem consolidar e a Dama regressar ao jogo. Um jogo mais fino, mais subtil tem que ser idealizado, limitando a acão das peças Brancas por meio de ataques sistemáticos e ameaças variadas. Assim o lance 14... Tfe8 impõe-se ( Znosko Borovsky - " The Middle Game in Chess)

[14.f3! com a ideia de Df2! 14...Ta8 15.Df2 Tfb8 16.Cd1 com a ideia de de Bd2 e Bc3 16...De6 com jogo de possibilidades mútuas]

14...Tfe8
Por acaso existia uma maneira mais rápida de "levar a carta a Matilde" [14...Ta8 15.Dd3 Tfb8 com a ideia de De6, Cg4, Ce5 e Cc4]

15.Dd3?!



As Brancas retrocedem com a sua Dama, mas ao mesmo tempo aliviam a pressão sobre o peão de c6, o que vai permitir liberdade de ação à Dama Negra. Um jogador que se encontra em desvantagem temporal, deverá procurar manter viva qualquer ameaça sobre a posição contrária ( Znosko Borovsky - livro citado) No fundo o que Borovsky quis dizer, é hoje uma regra fundamental da dinâmica do xadrez moderno : contra uma vantagem de tempo-desenvolvimento, versus material, o jogador que tem material extra, não deve na maioria dos casos, desviar para posições defensivas, qualquer peça que exerça pressão constante sobre a posição do adversário e sobretudo impeça manobras libertadoras do lado de quem tem vantagem de tempo. Neste caso a Dama Branca em a6 atacava o peão de c6 e impedia o reagrupamento das Negras à base de De6, Cd7 Cb6-e5 e Cc4. Se fosse atacada com a Tore negra em a8, retiraria a c4, sempre mantendo pressão constante en c6. Assim hoje o xadrez dinâmico da modernidade!

[15.f3 Ta8 (15...d5 16.Td1 Ta8 17.Dd3 De7 18.Bg5 h6 19.Bxf6 Bxf6 20.exd5 cxd5 21.Dxd5 Bxc3 22.bxc3 De3+ 23.Rh1 Dxc3 24.Db3 Te3 25.Dxc3 Txc3 26.Td2) 16.Dd3 (16.Dc4!) 16...Teb8 17.a4 De6 18.b3 Cd7 19.Tb1]

15...De6!


16.f3




Cd7 17.Bd2?


Nimzowitsch, sem entender a posição, não consegue a elasticidade de pensamento para parar a ameaça Negra. A fidelidade a uma ideia errada de reagrupamento, mantendo um peão a mais, levará à derrocada da sua posição. Aqui sim, é de acreditar que Capa estava já seguro do completo equilíbrio do jogo, ou mesmo da sua superiodade. [17.Bf4 Ce5 18.Bxe5 Bxe5 19.Tab1; 17.b3 Ce5 18.Dd2 Cc4 19.Dd3 Ce5 20.De3 Cc4 21.Dd3 (21.bxc4 Dxc4 22.Dd3 Dxc3 23.Tb1 Ta8) 21...Ce5 com repetição]


17...Ce5 18.De2 Cc4 19.Tab1



Ta8 20.a4?




[20.b3? Cxd2?! 21.Dxd2 Ta3 (21...De5? 22.Ca4) ; 20.Be1 era muito melhor 20...d5! (20...Teb8 21.b3 Ca3 22.Td1 Cb5 23.Cxb5 cxb5 com vantagem) 21.b3 Cd6 22.a4 f5 mesmo se as negras continuassem com um jogo muito mais confortável]

20...Cxd2 21.Dxd2 Dc4! 22.Tfd1


[22.Ce2 era a única possibilidade de oferecer alguma resistência 22...Txa4 23.b3 (23.c3 Dc5+ 24.Rh1 Tea8) 23...Dc5+ 24.Rh1 Ta2 25.Tbc1 igualmente com má posição]

22...Teb8



23.De3


[23.Dd3 Dc5+ 24.Rh1 Tb4 25.Ce2 mantinha algumas esperanças de resistência, embora a superioridade negra seja inquestionável 25...Txb2 26.Txb2 Bxb2]

23...Tb4! 24.Dg5

[24.Dd3 tarde de mais 24...Dc5+ 25.Rh1 Tab8 etc.]

24...Bd4+ 25.Rh1 Tab8 26.Txd4 Dxd4


27.Td1 Dc4 28.h4 Txb2 29.Dd2 Dc5 30.Te1? Dh5! 31.Ta1


[31.Df2 Txc2!]

31...Dxh4+ 32.Rg1 Dh5 33.a5 Ta8 34.a6 Dc5+ 35.Rh1 Dc4 36.a7 Dc5 37.e5 Dxe5 38.Ta4 Dh5+ 39.Rg1 Dc5+ 40.Rh2 d5

[40...Txa7 levava a desnecessárias complicações 41.Ce4 Txc2! (41...De5+ 42.f4 De7 43.Txa7 Dh4+ 44.Rg1 Tb1+ 45.Dd1 Txd1#) 42.Dh6 (42.Cxc5 Txd2 43.Txa7 dxc5 44.Txc7 Td6) 42...De5+ 43.f4 Txa4! 44.fxe5 Txe4 etc. ]

41.Th4 Txa7 42.Cd1 0–1


Este artigo só foi possível depois de consulta aturada da seguinte bibliografia:

Tarrasch, Siegbert, S. Petersburg 1914, International Chess Tournament, Caissa Editions, 1993

Soltis, Andy, The Great Chess Tournaments & Their Stories, Chilton Book Company, 1975

Znosko Borovsky , The Middle Game in Chess, Dover, 4ª Edição, 1980

Линдер И. М., Линдер В. И. Капабланка в России — М.: Советская Россия, 1988

Сизоненко А. И. Капабланка : Встречи с Россией. М., 1988

(quer o livro dos irmãos Linder,mas sobretudo o de Sizonenko, são um manancial esplêndido de informação)

Isaak e Vladimir Linder , Lasker, Filosofia no Trono", Ripol, 2005

DVD ChessBase " The Greatest Tournaments in the History of Chess, 1851-1986", 2004

DVD ChessBase " World Champion Emanuel Lasker ", 2002

Mas também, os extraordinários "Capablanca...A Compendium..." de Edward Winter, o " Alexander Alekhine Chess Games 1902-1946" de Skinner e Verhoeven, os 2 volumes de Capablanca e Lasker da Chess Stars ( Khalifman), o Rubinstein 1º volume do Donaldson e Minev, o " Frank Marshall - United Sates Chess Champion" de Andy Soltis, o "My Great Predecessors Vol I" do Kasparov, O Lasker do Hannak, o "My Chess Careear" de Capablanca, o "Positional Sacrifices", do Mc Donald, o "Secrets of Modern..." do John Watson, a "biblia" - "The Oxford Companion to Chess" do Hooper e Whyld, entre outros.

Um "cheirinho" nesta minha fotografia




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Arlindov Vieirovich