07/08/13

ILDA DAVID, ONDINA BRAGA, MANUEL GONÇALVES e...XADREZ

Um bocadinho de Literatura, de Arte, de não esquecimento,  e... de Xadrez cultura fora de tabuleiro também faz bem e não engorda num país em muitas coisas, nomeadamente na cultura, obeso de estupidez e boçalidade.

Uma grande artista conhecida de poucos ( não costuma expôr no Palácio da Ajuda, nem "cacilha", nem faz "cagalhões ampliados" como certeiramente os apelida o poeta Manuel de Freitas), que numa arte de inscrição poética de uma beleza sintética, frágil, comedida, tem vindo há anos a preencher um universo artístico rarefeito dessas virtudes que me fazem tanto admirar esta artista plástica.
De 86 e do catálogo da INCM com belíssimo texto de Alexandre Melo e João Pinharanda, em que o jogo, talvez o xadrez, serve como temática reflexiva inspiradora da obra.



  



"Mesmo quando todos os elementos remetem para uma única situação, reconhecível — o paraíso terreal, as visitações, os jogadores —, não se está nunca num contexto de narração, mas de aparição: o verbo estar, conjugado como imanência sem peripécias. O que anima a presença não é o previsível desenrolar de um jogo narrativo, o que se passou antes ou vai passar-se depois, o que estão a fazer ou a dizer, mas uma suspensão da batida do tempo, uma expectativa que se distende ilimitadamente e se carrega de ternos e temíveis presságios.


Dois jogadores repousam reclinados um de cada lado de um tabuleiro de xadrez sem peças.

Frequentemente, e quase sempre sob maus augúrios, se tomou o xadrez para metáfora dos jogos, das regras e dos combates que crispam o mapa--mundo e ciclicamente lhe afligem a história. Com óbvio exagero podem, portanto, generalizar-se à humanidade toda as conclusões a retirar do facto de nos sentarmos à mesa de um tabuleiro sem peões nem reis.


Da ausência de peças resultam radicalmente alteradas a natureza do jogo, a marcação do tempo, a forma de presença, a possibilidade de coincidência ou cumplicidade. O confronto ou a dissipação deixam de ser mediatizados por acessórios guerreiros ou lúdicos, não há modo nem motivo de comprimir as durações.


Na rarefacção do contexto narrativo, na suspensão do tempo, as figuras entregam-se no seu mútuo mutismo, cegueira, solidão, mas também na sua maior franqueza e vulnerabilidade.

Sem trunfos e sem pressa, as mãos encaminham olhares que se respeitam até ao temor e se detêm no pressentimento. Adivinhação de encontro iminente, que pudesse ser uma aliança sem ser um nó."
                                                    ALEXANDRE MELO
                                                   JOÃO PINHARANDA






De Maria Ondina Braga, escritora das maiores da Literartura Portuguesa, quem nem se "rebela" nem "margarida", extratos de um romance curioso, que por acaso nem foi dos mais felizes que escreveu, mas em que nalguns extratos aparece o xadrez como leifmotiv de uma das infelicidades conjugais de uma personagem.



"21 de Junho

Pois Vânia sempre cá veio no sábado. Um pouco atrasada, que desculpasse... Ora, que importava? Bonito o seu vestido de algodão florido, sapatos abertos, um penteado novo. Devido a esse penteado, no entanto, estive todo o tempo contrafeita. Alterava-lhe as feições. O rostinho estreito alargava; até os olhos; até o sorriso. A boca lembrava-me, volta e meia, a boca rasgada da Brigitte. «Sabe, fica diferente com o cabelo assim.» Bem, uma vez o Gustavo tinha insinuado que gostava mais de cabelos curtos. O Gustavo!... «Não notas nada em mim?» Levantando a cabeça do papel onde resolvia o problema de xadrez (joga xadrez por correspondência), olhou-a, desatento, a pensar talvez como havia de conseguir xeque-mate — e nem a viu.(...)



 Por outro lado, aquele que o meu coração elegeu  (ou o meu cérebro?) vai-se tornando cada vez mais  presente e inexplicável. Não sei se enlouqueci. Passo as duas mãos pela testa, aparto o cabelo molhado de suor, sufoco. E o remorso a morder-me nas veias. Éramos amigas. Ela abria-se comigo todas as noites: «Vivo com um fantasma, sabe? Um fantasma que  joga xadrez e fala só. E eu abstracta... e apaixonada. Ah, como é cruel estar apaixonado! Mesmo que  seja só mentalmente. Os outros deixam de existir. (...)







A Vânia jamais aludiu ao marido de modo a individualizá-lo, a defini-lo na sua radical unidade. Antes alternadamente como colega de estudos (ou mestre); especialista em números (técnico de contas?); pai excitado com o nascimento do filho e vexado por este lhe sair anormal; marido sem atenções para a companheira; espírito terra-a-terra; jogador de xadrez...(...)



27 de Agosto

Do diário da Vânia:

Saudades? Sim: da minha sala de estar, do meu maple, dos livros da Pearl  Buck, dos poemas da Florbela, dos discos do Bela Bartok. Aqui nem sequer uma estante, e as paredes manchadas a alcatra rota. Não é o Gustavo que me falta nem o baque das peças de xadrez.

 Visto de longe, a frio, o Gustavo não passa de um cavaleiro, torre ou coisa assim ao jogo de xadrez. Não consigo desligá-lo da simetria dos quadrados a preto e branco, do método, do cálculo. Um perfeito mecanismo, o Gustavo: Chego às sete. Preciso de jantar cedo. Tenho reunião às nove. Dá primeiro de comer ao pequeno e deita-o.

 Mas será isto vê-lo a frio? Ou vê-lo a desempenhar um papel automatizado pela rotina, eixo de uma instituição? Como, neste momento, me verá a frio (?) o Gustavo?(...)"





 Para terminar, um poeta, Manuel Fernando Gonçalves, nem dos conhecidos, nem dos badalados, nem de escolas-lcapelas da poesia dita atual e portuguesa que existindo se negam, mas que ao longo dos anos tem construído uma obra em que  o humor, a sensibilidade fina,  a des-construção da realidade pelo absoluto da linguagem ,se tornaram na minha ótica uma imagem de uma poesia de invulgar qualidade. 








CONTAS À  VIDA

Eu sou um rapaz a prazo,

sem lei nem rock, nem rei

ou torre que queira defender

e se a dama insistir, não sei:

ou me perco e me atraso,

tenho mesmo muito que fazer

antes que ela me mate.



Todos os jogos são assim,

uns mais de lógica, de amor,

outros táticos, mesmo virtuais,

estes com as peças no chão,

aqueles cegos, fingidos, carnais.

Finjo que adivinho o meu fim

se espreito o ás do outro jogador,

embora pareça só, concentração.



A dama, dona de séria intuição,

agita-se, mexe no vento, bate

na garupa do cavalo, põe ordem

à mesa: o cheque, na minha opinião,

não tem cobertura, é falso, anima

apenas a ilusão de haver um trono

e, espero mesmo que concordem,

apesar da posição branca, incerta,

não deve, sequer em lance brilhante,

o peão tomar a sela, como dono,

como quem lhe salta para cima.



Eu sou um rapaz de mente aberta,

sem vantagem, preta ou branca,

ou roque algum em mão amante.

Não quero mesmo é ser pobre,

não quero é, neste jogo, morrer

en passant, em lance pouco nobre.

Onde vive a dama de alma franca,

o traço do que estou a escrever?


 Manuel Fernando Gonçalves ( Revista de Poesia, Relâmpago, 31-32)












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