21/12/14

ROSA ALICE BRANCO

De uma grande, enorme poeta da literatura portuguesa atual.
Foto minha




A PRIMEIRA PEDRA

Inclina-se para a frente e tropeça no que foi :
o salto do cavalo antes do cheque mate, antes da memória
mudar a posição das raízes. Como escapar ao jogo vicioso
da memória? Há uma espécie de futilidade
necessária à crença na leveza.
Basta dizer por exemplo:
eu era apenas uma criança quando atirei a pedra
e a pedra era uma nuvem branca
e a nuvem não era a tempestade.
Veio a saber-se que era um assassino,
ou vendia órgãos tresmalhados,
ou então.
Apanhou uns anos e bom comportamento
(ela descrê, mas ele sai bem antes)
com as peças alinhadas sobre o tabuleiro.
E logo o pião se torna cavalo: um salto cria a inocência,
as peças soltam-se no ar e depois caem para cima
em movimento acelerado como é próprio da leveza.
Foi capturado de novo e o caso arrasta-se
no tribunal e nos cigarros do pátio.
Salvo as devidas diferenças, não é o que todos
fazemos? Caso contrário porque me arrasto também
entre que fui e serei? Comes a rainha
e tudo o que sou (ela ri desfeita)
me atira o rosto contra o chão do tabuleiro.
Ainda me debato com a boca a saber a terra
Qualquer  inclinação do meu corpo
É só bússola nos olhos de um cego.

Rosa Alice Branco, O Mundo Não Acaba no Frio dos teus Ossos

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