Foi
no dia 19 deste mês, de enfarte súbito, morreu relativamente jovem aos 53 anos.
Era um GM de xadrez talentoso, mas retirado do xadrez de alta competição que
nos meados dos anos 90 abandonou por não se rever nos meandros quase mafiosos,
oportunistas e elitistas para os quais o xadrez de topo se encaminhava muito
por culpa de uma FIDE desde o fim do mandato de Olafsson , (des) governada por
gente de estatura ética e xadrezista de
duvidoso valor, mas também por jogadores de topo mais interessados nos seus
proveitos e fama do que no xadrez em geral. Disse, abandono do xadrez de alto
nível que não do xadrez, porque continuou até pouco tempo antes de morrer
ligado à sua terra natal (Cuernavaca Morelos) e ao desenvolvimento e ensino do
xadrez no México.
Jovem,
bem parecido, de forte personalidade, elevado sentido ético, e sobretudo de um
nível cultural elevado num meio onde apesar de títulos e normas, a burrice
ensimesmada, a incultura gritante, os atavismos psicanalíticos mais entranhados
e doentios proliferavam e proliferam, não admira que Marcel Sisniega Campbell
mostrasse outros poderosos talentos que não só os do xadrez, nomeadamente no
cinema e na escrita. Tornou-se um novelista de mérito reconhecido e sobretudo
um, cineasta de renome no contexto do cinema mexicano em particular e da
América do Sul em geral.
Morreu
pois um GM ( título adquirido em 1992- ainda os títulos não se obtinham de
aviário) que muito deu ao xadrez mexicano e que se agora prova era altamente
reconhecido em determinadas zonas do xadrez que não as comuns de blogues, ou da
Juvenália do xadrez atual de velocidade arrepiante de novidade teórica, mas também
de esquecimento sónico do passado do xadrez, das pessoas de que é nutrido o
xadrez.
Pela
própria personalidade/nível pessoal de Sisniega, por influência de um livro de
Gabriel Velasco, e pelas referências do MI Raul Ocampo, vai para muitos anos
que me interessei por este jogador e GM mexicano. Segui alguns dos seus
inúmeros e belos artigos de xadrez no
jornal mexicano “El Universal” e que podem ler e descarregar em :
repassei
no tabuleiro belas e variadíssimas partidas de Marcel, segui aqui ou ali a sua
carreira cinematográfica, embora nunca tenha visto um filme completo da sua
lavra, descobri um grande livro de xadrez da sua autoria.
Assim,
morreu Marcel Sisniega, e o xadrez Americano ficou mais pobre. Um xadrez onde a
tragicidade tem atacado em demasia pela ceifa de jogadores talentosos e,
estou-me a lembrar do GM argentino
Gerardo BARBERO desaparecido em 2001 apenas com 39 anos de idade, ou desse grande
jogador cubano que foi Guilermo GARCIA que desapareceu deste mundo num estúpido
acidente rodoviário em 1990 aos 47 anos.
Que
escrever sobre Sisniega GM de xadrez que não fosse já escrito? Como fazer para
não repercutir o mesmo que vai enxameando os blogues com as mesmas notícias ?
Talvez deixando Sisniega falar de Xadrez e Marcel era um excelente professor de
xadrez, para além de grande jogador. De escrita simples, fluente, essencial,
com raras capacidades de comunicar xadrez, conseguia no que escrevia quer no
Jornal, quer no livro que nos legou, traduzir a paixão, o entusiasmo, a
competitividade ligada às emoções sentidas durante uma partida.
Deixemos
pois falar Sisniega, mas antes quero aqui colocar uma foto, rara, embora fraca
qualidade. Esta foto não deve trazer grandes recordações ao Kevin Spraggett ,
apesar de a sua recordação do seu enquadramento ser das mais aprazíveis da sua
carreira, já que para além do título de GM, conquistou um lugar nos Candidatos
neste Torneio. E a partida não lhe deve trazer gratas recordações, pois foi a
única que o Kevin perdeu em TAXCO no ano de 1985 num torneio brilhante, onde só
foi superado por Timann, Nogueiras e Tal! Que Xadrez magnífico jogava Kevin
Spraggett nesta altura!
Nesta
foto a cara de Spraggett diz tudo. Estávamos no lance 41 e o seu adversário o
cubano Jesus Nogueiras ( As partidas entre Spraggett e Nogueiras foram quase
sempre de grande luta no tabuleiro e saudável rivalidade- basta vê-las numa
base de dados!) tinha acabado de realizar um 40...Ba3 a que Kevin respondeu com
41.g4 e a partida salvo erro foi adiada. O par de Bispos de Nogueiras irá
impor-se sem dificuldades dez lances depois. O árbito sela o envelope, Tal
parece interessado em algo que não na posição do adiamento, Kevin cofia o
bigode (?), quase certo do inevitável, e alguém de mãos nos bolsos observa
interessado mas também percebendo o futuro do final das Brancas- nem mais…
SISNIEGA .
E
Sisniega sobre Taxco 85 escreveu um livro magnífico sobre a sua própria
participação ronda a ronda em perpassa toda a sua humanidade, as suas alegrias,
as suas deceções, as suas dúvidas, as suas análises, erros, derrotas e
vitórias, em suma um livro de torneio em gente, em carne-viva como raramente se
vê num livro de torneio, ou num livro de um GM que sabe amar o xadrez.
Talvez o
seu livro fosse terapêutico, pelo falhanço neste torneio de Sisniega, ele que
tinha no mesmo grandes esperanças e expetativas senão no apuramento, pelo menos
no título de GM ( era simplesmente na altura MI) ,sendo para mais um Interzonal
na sua Pátria, talvez, ou talvez haja nele algo de justificativo num ato de
enorme humanidade. Excelentes comentários verbais, certeira escrita de estados
de espírito durante a partida, variantes que chegam sem nos sufocar "de poderia
ter sido", ou "em vez disto e daquilo, outra coisa", com dezenas de outras
variantes que ramificam em outras dezenas de saubvariantes, mas sim no
equilíbrio quase perfeito entre análise e texto, tudo junto numa linguagem
xadrezista elegante, formalmente apelativa e de grande nível intelectual (tão diferentes de broncos e grunhos que escrevem para revistas especializadas!). Sobretudo um livro de xadrez como
poucos, que em muitos pontos que Marcel conhecia e bem a literatura do xadrez,
e sobretudo o Tal de 61, ou o Bronstein de Zurique 53.
Vejamos
como Marcel Sisniega analisa a sua partida da sessão catorze com Spraggett,
sem rede, isto é, sem informática. E sem Fritz, ou Houdini, ou afins (que fácil
era mostrar isto ou aquilo para armar ao agora é que se joga e analisa!!) vou
deixar falar o GM mexicano. E como fala Sisniega! Como se exprime Sisniega! Ele que me perdoe lá no Reino de Caissa a
minha tradução um pouco atamancada do seu texto.
Sisniega,Marcel (2470) - Spraggett,Kevin (2560) [B44]
Taxco Interzonal Taxco (14), 1985
[Marcel
SISNIEGA]
Cada partida de
xadrez tem uma vida própria, uma carateristica que nos envolve mas também
ultrapassa. Quantas vezes ao penoso desgaste dos exércitos em terra, surge uma
força desconhecida que nos coloca de sobreaviso negando-nos a manobra que
iriamos fatalmente empreender? Explico: uma coisa é o impulso, outra o
pressentimento. Aquele nasce à superfície, chama débil de uma mal assumida
facilidade. O pressentimento é
diferente, nasce do medo e obedece a a uma iprofunda intuição. Sem sabermos
explicar a sua génese, aparece rapidamente à mente do xadrezista concentrado na
sua tarefa. Para nossa infelicidade, estes lampejos de lucidez passam de forma
fugaz e voláteis como um deus grego e só apercebemos da sua parábola ao
decantar as impressões da memória.Era a minha oportunidade de abrir fogo com as
peças Brancas. as voltas do sorteio fizeram Kevin Spraggett tomar uma decisão
fora do comum. Na ronda inaugural quase teve Timman nas cordas. Agora, com a
classificação quase conseguida, resolveria a arisca Defesa Siciliana. Prepara-te
para um grande duelo-disse Victor ( Frias). Logo acrescentou: O estado de
espírito de Spraggett é precisamente o necessário. Vejo-o entrar no teu jogo.
1.e4
c5 2.Cf3 e6 3.d4 cxd4 4.Cxd4 Cc6
Esta ordem de lances permite às negras
evitar4 o ataque Keres, em troca de se acreditar firmemente na formação
"ouriço"
5.Cb5 d6 6.c4 Cf6 7.C1c3 a6 8.Ca3 Ae7 9.Ae2 0–0 10.0–0 b6
11.Ae3
No passado aceitava-se de bom grado que esta formação de Maroczy
oferecia às Brancas um pressão duradoura. Hoje estas ideias modificaram-se e
este esquema das negras mantêm uma igualdade teóirica com as ameaças de
rupturas em b5 ou d5
11...Ce5
Alguns podem preferir 11...Bb7 12.Db3 Cd7. Em ambos os casos estaremos perante uma
guerra de trincheiras. A estratérgia será moldada por manobras laboriosas e
jogo de peças e ligeiras provocações. [11...Ab7 12.Db3 Cd7]
12.Db3 Ced7
13.Tfd1 Ab7 14.f3 Te8 15.Tac1 Tc8
Afastando-se de 15...Ta7 como jogou
Alonso Zapata contra Eric Lobron em 1984, e de 15...Dc7 a preferida de
Romanishin. Em principio achei que a jogada do canadiano debilitava o peão b6,
embora tivesse de estar atento a um eventual e oportuno d5 da sua parte. Nesta
posição vale mais o peão lateral ou o Rei?
16.Ca4 d5
17.e5 Acreditei ser
necessário impedir qualquer ação à Torre negra cem e8. Quando bem realizada, a
estratégia é o justo contrapeso da tática.
17...Cxe5
Infatigável
mastigador de chiclete, Kevin Sporaggett entra serenamente nas complicações
18.Cxb6
[18.Axb6 Dd7 19.c5 deixava o meu Bispo fora de ação]
18...Tb8 19.c5 Dc7
O
reagrupamento das Negras obedece a vàrios motivos: desde a saída tática CC6-De5
, até ao contrajogo no centro 20. Rh1
C5d7 21.Cd7 Cd7 22.Dc2 Tfc8 23.B4 e5. De
momento decidi virare as baterias para o peãozito de a6. Discutivel? Como se
verá, não o podia saber.
20.Da4 Cc6 21.Axa6
Toda a minha fé estava
concentrada na captura deste peão. Sentia-me inteiro. Lúcido. Atraído pela
força das peças. Inclusivamente sentia uma energia desconcertante. Como
explicar? Avizinham-se complicações; tinha calculado com alguma precisão e dei-me conta dos perigos que advinham da
captura do peão de Torre, estar de estar plenamente convencido do correto
da minha decisão. Nenhum remorso,
nenhuma dúvida constituias entrave à minha visão. Talvez pensasse que Fisher e
Alekhine deveriam ter essa fé cega em
cada uma das suas partidas.Razões para a minha surpresa quando mais
tarde na sala de análises descobrimos possibilidades excelentes:21. Rh1 De5
22.Bf4 Db2 23.Tc2 ou21.b4 De5
22.Cc2 d4? 23.Cc4 Isto levou-me a pensar que uma energia levada ao extremo por vezes
canaliza os acontecimentos. Por outras palavras, uima vontade forte,
insistente, poderosa vai-se impondo durante a partida. Poderia em minha defesa,
trazer a terreiro uma legião inteira de grandes jogadores sucessivanente desfeiteados pelos Campeões do
Mundo. [21.Rh1 De5 22.Af4 Dxb2 23.Tc2; 21.b4 De5 22.Cc2 d4 23.Cc4]
21...Ta8
22.Cb5 De5 23.Af4 Txa6
[23...Dxb2 24.Cc7 Axc5+ 25.Txc5 Dxb6 26.Db5 Txa6
27.Cxa6 Com ganho de qualidade]
24.Axe5 Txa4 25.Axf6
Inesperadamente
apercebi-me de: [25...Txa2
26.Axe7 (26.Cc7 Axf6 27.Cxe8 Axb2 com situação confusa. Talvez fosse
satisfatória (27...Ad4+ 28.Rh1 Txb2) 28.Tb1 Ad4+ 29.Rh1) 26...Txb2
Apercebi-me no entanto que Spraggett retrocedeu a Torre]
25...Ta5
26.Cc7
Esta
jugada intermédia estava nos meus cálculos
26...Axc5+ 27.Txc5 Txc5 28.Cxe8
gxf6 29.Cxf6+ Rg7 30.Ce8+ Rg6 31.Td2
Spragget estava muito apurado de
tempo. Ao contrário do que tinha acontecido com Prandstétter, senti que o
canadiano não me escaparia.
31...Tc1+ 32.Rf2 d4 33.b4! e5
Em apuros de
tempo, o meu adversário não quis averiguar se existia mate depois de 33.
....Cb4 34.Td4 e 35.Tg4+
34.Cd6! Cd8
35.Cd7?
Um jogador de técnica não muito apurada sabe que deve manter os
peões unidos. Ganhava: [35.a4 Tb1 (35...Rf6 36.a5 Re6 (36...Ta1 37.f4!) 37.Cxb7
Cxb7 38.a6) 36.b5 Ta1 37.Cdc4 Tb1 38.Tb2]
35...f6 36.b5
[36.Cc5 Ad5
37.a4 Cc6 Com incerteza no resultado; 36.Cxb7 Cxb7 37.a4 Cd6 38.b5 Cc4
Inclusive as pretas estariam melhor]
36...Ad5 37.a4?
a iluminação de
quinze jogadas antes transforma-se agora em vulgar ansiedade. O que me impedia
de situar a Torre atrás do Peão passado?
37...Ta1 38.Tb2
Finalmente!
Como era possível que Kevin Spraggett em situação evidente de inferioridade no
tabuleiro, com a bandeira do relógio prestes a cair, mantivesse esse ar , essa
postura imperturbável? Eu, gastava os meus últimos minutos em cálculos
laboriosos e ao ver que ganhava uma peça , escolhi essa variante
38...Txa4
39.b6 d3!
Depois da partida Spraggett sugeriu outra variante, mas inferior
[39...Ae6 40.b7 Cxb7 41.Cf8+ e Cb7]
40.b7 Cxb7
respirei de alívio.Uma
peça é uma peça. Não tinha sentido esconder o meu próximo lance e assim realizei-o à vista de Spraggett. Depois de
guardar a folha de partida no envelope, fui-me encontrar com o eufórico Victor
Frias
41.Cxb7 Td4 42.Re1
Forçado
42...e4 uma simplificação
inquietante.
43.Cf8+
[43.fxe4 Txe4+ 44.Rd1 Te2! E o meu Cavalo de b7 só
merece um tiro na cabeça.]
43...Rg7
[43...Rf7? 44.Cd6+ Rxf8 45.Tb8+
seguido de 46.Cf5]
44.Cd6 d2+ 45.Txd2 Txd2
Bonito. Uma peça a mais e bem
poderia tranquilamente propôr empate sem adiamento!Lavei a cara com água fria.
Outro meio ponto desperdiçado por água abaixo.Que fazer? Tirariamos mais
jugadas da gaveta. E se nos equivocamos? Esperança! Mas essa não tem lugar no
tabuleiro.Empate
Que descanse em paz.
Parabéns pelo texto, Arlindo.
ResponderEliminarDos muitos que saíram nos últimos dias sobre o Sisniega, este foi, sem dúvida, o mais bonito e interessante. E olha que não é fácil ombrear com um Raul Ocampo Vargas.
Sisniega morreu muito novo e , a bem da verdade, já olhava para o Xadrez com certa distância. Farto talvez de tudo aquilo que se sabe. Virou-se para o cinema e , de certa forma, deixou órfão o Xadrez mexicano.
Primeiro metaforicamente. Agora de facto.
Um abraço
Alexandre Monteiro