10/08/10

FIGUEIRA DA FOZ...NACIONAL DE JUNIORES 1975 I

Foi em Agosto....

Quero dedicar este artigo a toda aquela “malta” júnior fabulosa da Figueira da Foz 75, em particular a um grande amigo, companheiro de caminhada e paixão xadrezista, dos raros que não esquece, que numa tarde no nosso G.X. Porto recordou comigo carinhosamente este Nacional: o Rui Mendes.


Estou ali, “ melena desgrenhada, carão moreno”, só que em adolescência final. Olho, embalado entre a incredibilidade e uma ternura imensa. Sou eu? Serei mesmo eu? Quero-me reclamar, reconhecer naquele olhar, naquele rosto onde despontava pilosidade mal aparada. Sei que foi em Agosto 75, Casino Peninsular, na Figueira da Foz, assim o diz na minha já tremida letra no verso da bela foto a preto e branco.


Mas …Eu, aquele rapaz espigadote, dividido entre o ir deixar de ser “ado e entrar de peito aberto no complexo mundo do “ser Homem” !? Olho-te foto e, como certo filme, questiono-te: “sais daí e vens passear dentro da memória de mim?”, ou…” queres que seja eu a mergulhar a fundo na imagem de papel na minha memória de Ti?” O silêncio. Por momentos fitámo-nos surpresos e mudos. O Eu da foto parecia não querer envelhecer, o Eu do agora olhar intenso, quase marejado, receava as emoções de uma emersão efectiva no passado. Impasse de mim em nós. O compromisso. Convocar-te em mim, sempre que a emoção sentida da memória o pedir. Submergir-me na memória de Ti só o necessário para te convocar a esse diálogo essencial do “Nós”. Afinal o mesmo em emoções, sentimentos, espaço-tempo diferentes.


Olho-te…pareces concentrado, ou preocupado com a posição que se observa no tabuleiro. O flash intrusivo da máquina que te fotografou, fez-te franzir o sobrolho, como luz repentina que se acende em quarto escuro de pensamento. Não era um belo rapaz, não senhor. Pequeno, moreno, cigano, cabelo comprido de agasalho de orelhas, como revolucionariamente se usava, pretensões de bigode e pêra, mais barba não feita de dois dias. Sei que és Tu! O enorme papel identificativo pendente da mesa de jogo, confirma-o: “Arlindo Vieira”. O preto e branco fotográfico, a convocar o amarelo da tua camisola, o castanho aos quadrados da tua camisa de “colarinhos à aviador”. Tu pela pose de braços cruzados no tabuleiro, Tu, pelo rosto carregado de um ano cheio de emoções. O teu adversário, cheio, enorme, vislumbra-se cortado no preto e branco, e a mesma folha identificativa no tabuleiro diz-me o seu nome: Tito Fernandes. Ao meu lado, o Manuel Serra com o seu célebre gesto de tapar pavilhões auriculares, de concentração apurada, disputa partida acirrada com um descontraído Luís Espírito Santo. Afastado o Zé Pereira dos Santos, mais de mundanas preocupações, lancha enquanto observava o seu tabuleiro onde o seu adversário reflectia.



Lembras-te? As luzes do tecto incidiam directa e luminosamente sobre tabuleiros e belas peças espanholas “staunton” de madeira e, ao calor da luta, sobrepunha-se o calor emanado do halogéneo. Ajudas-me? Jogávamos numa espécie de palco, num estrado, para o qual se subia por umas escadas atapetadas. Do Casino, não sei que salão era…talvez pela foto, um salão com um bar, não sei. Perto da entrada, isso recordo-me. Bela sala, como nos torneios de GM, ou como assim as imaginava nas revistas Jaque espanholas.



Eu, ajudo-te… . Um burburinho inquieto e nervoso, diálogos cruzados de adultos e jovens. Risos e sorrisos aqui e ali alterados que pareciam ferir a calma serena da sala.



Estamos no salão, antes do início da primeira sessão desse Campeonato Nacional de Juniores de 1975. Para muitos, a primeira vez de um Nacional, ou de uma saída da sua terra - natal, para um torneio de xadrez. Sala cheia. Miúdos, mesmo miúdos, ao lado de jovens adolescentes barbados a mostrar fim desse ciclo. Alguns pais e entidades organizadoras. A luz intensa em cima do estrado - palco, a contrastar com a ténue luz do salão. Uma ou outra palavra circunstancial de abertura e a subida para o palco da acção. Um nervosismo intenso, falta de respiração, coração de batida rápida. De pretas contra o já experimentado António Pereira dos Santos. Eu, de número 30, atribuído na ordem de força xadrezística. Eu e a minha eslava Smyslov, de Pachman decorada, a evitar por uma trintena de lances o inevitável desfecho. E depois outros e outros, adversários directos de tabuleiro se seguiram. Cinquenta jovens de idades e proveniências diversas, ali, durante sete dias, para a disputa de um título, que se sabia confinado a um número restrito deles, pela força de jogo, experiência., conhecimento teórico. O João Sequeira, o António Pereira dos Santos, o “puto” Fernandes, já promessa do xadrez nacional e, sobretudo, o Luís Santos, os “galos” para um poleiro na altura prestigiado: “Campeão Nacional de Juniores”.


O Luís Santos…revejo-o como se hoje fosse, sendo-o há trinta e cinco anos. Na primeira jornada, a sua entrada no salão de jogo, a sua forma de estar no tabuleiro e no xadrez, siderou-me. Calças cor-de rosa., chinelos, cabelos longuíssimos, andar calmo e compassado e, sobretudo uma atitude no tabuleiro completamente diferente de todos os outros jogadores: uma concentração intensa, um rosto impassível de esconder emoções no fragor da luta, uma postura de “estar ali para vencer”, um quase profissionalismo no jogo e, pormenor dos pormenores, uma forma de anotar os lances, diria “caracoleante” que nunca esquecerei e que se já o era, continuou a ser uma “imagem de marca” do Luís: o ritual de abrir a cápsula da caneta (de tinta permanente talvez) com uma calma impressionante, sempre que se aprestava para anotar a sua jogada na esguia folha de partida, e o mesmo gesto de 10 segundos para fechar a mesma caneta que momentos antes tinha aberta, para só depois a colocar com a mesma calma e delicadeza a seu lado na mesa de jogo. Mesmo em apuros de tempo, cumpria este hábito de forma sacrossanta. O Luís Santos que ganhou este Nacional de forma segura e brilhante. Como irá ganhar com igual brilhantismo e segurança, o seu primeiro Nacional Absoluto (e meu único de participação) em S. João da Madeira.


Lembro-me de muitos deles, uns, de imagem adolescente gizada claramente na memória, outros, mais esbatida. O Luís Santos, o António Fernandes, o Zé o e António P. Santos, os irmãos Sequeira, João e Fernando, O Luís Espírito Santo, o Manuel Serra, O Martim Gomes, o Tito Fernandes, o Lino Esteves, O Rocha Amaral, O Amadeu Loureiro, o Miguel Babo, o Firmino Silva, o Henrique Pereira, o Guilherme Gonçalves, o Jorge Coelho, o Henrique Magro, O Sílvio Santos e o Jorge Guimarães, O Zé Azevedo, o Rui Mendes, o Fernando Castro, o Francisco Lemos.


Ali, cerca de cinquenta jovens, naquele Agosto de 75, naquela belíssima cidade da Figueira da Foz. Semana de sol quente, entrecortado um dia ou outro de mudanças de humor do “senhor tempo”. Como o teu espírito! Lembras-te? Solarizado, chuvoso…conforme as circunstâncias, a experiência turbulenta e aconchegante ao mesmo tempo, mas rica, desse ano de 1975. Esse Agosto, nessa cidade, perfeita, pequena, solitária e solidária, ainda não “enturistada”, abafada de gente, labiríntica de construções. Uma Figueira para sempre gravada no meu espírito juvenil. Uma Figueira de areal extenso, de distância a perder de vista de início de praia ao mar, de areia atapetada por estrados de madeira, qual rendilhado de quadro de Vieira. A Figueira de praia - espaço, longe, aberta, tão diferente das minhas praias - cantinho, “pé aqui – mar –acolá “ da Foz ou Matosinhos! As ruas da Figueira, pequenas, solares, de orientação fácil, tão diferentes do meu Porto medieval –labiríntico! A Figueira, para esse Nacional de Juniores, mas também para me refazer de emoções muitas, de procura de certezas outras tantas, de me recolocar no epicentro de mim.

(Continua)

5 comentários:

  1. António Serra, não: Manuel Serra. Manuel Domingos da Cunha Serra.

    ResponderEliminar
  2. Não sei caro anónimo. E o mais engraçado é que tenho a folha de partida com o Serra ( perdi), jogada no dia 30 de Agosto de 1975, partida nº 196, e como o cabeçalho não era escrito pelos jogadores mas pela Direcção da Prova, sabe o que lá vem? " António Cunha Serra".
    Talvez tenha razão, e basta ir á Revista Portuguesa de Xadrez onde aparece um M.Serra a jogar pelo Alvalade.
    Mas Na lista Elo (por ex:2008), aparece um António Serra, nascido em 56, mas não é "Cunha", por isso deve ter razão: pelo Elo e data de nascimento 55, deve ser como diz, e foi erro da Direcção da Prova no cabeçalho da folha de partida.
    35 anos depois, é um tempo já razoável para me lembrar de todos os pormenores.
    Obrigada pela correcção, mas desculpe, não entendo porque se "anonimizou". Ficava feliz por saber quem ainda me vai lendo neste blogue.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Arlindo, não sou um fantasma, estive mesmo no torneio e ganhei-te; o manuel era meu primo direito, abraço

      António Serra

      Eliminar
  3. Arlindo,

    Não sei quem é o anónimo mas a informação dele é correcta. Até no nome completo do Manuel Serra, já falecido de doença prolongada (como se diz).
    A tua memória está boa, mesmo 35 anos depois. Eu, já na altura, tinha dificuldade em reproduzir as minhas partidas alguns dias depois...

    Um abraço,
    António P. Santos

    ResponderEliminar
  4. E o Álvaro Pereira no ensaio de simultânea às cegas para bater o recorde ibérico contra 30, que se conseguiu no Casino...Brilhante.

    ResponderEliminar